sábado, 28 de maio de 2011

Apenas um guerreiro descalço conquistou Roma


Escrito em 24/08/2008
Colegas de todas as cores, origens, gêneros e culturas
No momento em que se comemora a conclusão dos Jogos Olímpicos de 2008, no momento em que todos comentam os lances mais belos e os atletas espetaculares eu volto os meus pensamentos para a prova que para mim é a mais importante modalidade esportiva que existe, a maratona.
A maratona é uma das mais democráticas provas esportivas, enquanto que noutras modalidades os competidores participam de uma seqüência de provas eliminatórias, sendo a final disputada apenas por uma elite. Na maratona todos correm juntos, os famosos e os anônimos, os candidatos ao título e os azarões. Graças ao seu alto grau de dificuldade tem sido desde o seu nascedouro e ao longo de toda a história associada a inquestionáveis atos de heroísmo. A maratona pelas suas peculiaridades permite que o competidor com profunda força de vontade possa sobrepujar aquele que parte para a competição equipado apenas com a força bruta.
Dentre os diversos heróis das maratonas o maior de todos é para mim o etíope Abebe Bikila, mas para entendermos o porquê dessa opinião é preciso que conheçamos um pouco da história do seu país.
No início do século XX, após a Primeira Guerra Mundial, foi criada a Liga das Nações, que se propunha a resolver através da diplomacia as disputas entre os diversos países. Um dos seus membros, a Etiópia, era uma monarquia e o único país da África que havia escapado da cobiça das potências européias, apesar de estar cercada por colônias, dentre elas as colônias italianas da Eritréia e da Somália. Nessa mesma época, a Itália via a ascensão de Benito Mussolini que prometia restaurar a antiga glória do império romano. No entanto, incapaz de enfrentar países que com certeza tinham capacidade de se defender, o ditador italiano resolveu atacar um dos países mais pobres da África.
Aproveitando-se de um incidente ocorrido num posto fronteiriço, Mussolini, que se considerava a encarnação do César, invadiu a Etiópia em 03 de outubro de 1935 com mais de 200.000 homens equipados com fuzis modernos, milhares de metralhadoras, centenas de canhões, tanques e aviões e não satisfeito com tamanho poderio bélico, usou gás venenoso, uma arma banida pela Liga das Nações. A invasão que se esperava ser um passeio, estendeu-se por mais de 7 meses e custou milhares de vidas de ambos os lados. Imediatamente o imperador da Etiópia Haile Selassie apelou para a Liga das Nações que um mês e meio depois decretou sanções econômicas contra a Itália baseados no artigo 16 da sua Carta Constitutiva. Estranhamente empresas americanas continuaram vendendo petróleo para a Itália, apesar do governo americano ser integrante da Liga. No seu país Haile Selassie comandou heroicamente a resistência ao invasor em batalhas em que muitas vezes as armas usadas não passavam de lanças e pedras que eram atiradas do alto das montanhas. Finalmente em 05 de maio de 1936, ano das Olimpíadas de Berlim, as tropas italianas entraram em Adis Abeba, capital da Etiópia, após uma batalha comandada pelo próprio imperador, onde as tropas etíopes totalizavam menos 10% do número de combatentes invasores. Derrotado, o Négus (rei dos reis) Haile Selassie exilou-se em Londres e de lá partiu para Genebra, na Suíça, para protestar contra a invasão do seu país e invocar o princípio da Segurança Coletiva, segundo o qual a agressão a um dos membros da Liga seria uma agressão a todos os seus membros. Em junho de 1936 um homem negro, baixo, portando uma vasta barba, uma capa preta sobre os ombros e muita dignidade na alma proferiu um belo discurso na cambaleante Liga. Após a leitura do discurso, proferido em aramaico e ao som de vaias da delegação italiana, 25 membros se abstiveram (se acovardaram), 23 votaram contra (também se acovardaram) e apenas o próprio Selassie votou a favor da Etiópia. A covardia da Liga decretara então, que reconhecia a conquista do reino do Négus. Três anos após a fracassada sessão da Liga das Nações explodia na Europa a Segunda Guerra Mundial, concretizando-se as proféticas palavras do governante etíope no seu discurso, "Hoje somos nós, amanhã serão vocês."
Em 1960 durante as olimpíadas de Roma um novo capítulo desta história foi escrito. A maratona neste ano foi disputada pela primeira vez à noite, num percurso que foi demarcado em toda sua extensão por guardas italianos portando tochas. Quando o primeiro colocado na maratona entrou no estádio para dar a volta olímpica e cruzar a linha de chegada para espanto de todos, o atleta era um negro, primeira vez que isso ocorria na história, e ainda por cima correndo descalço. Com certeza, quando os alto-falantes anunciaram tratar-se de um etíope muitos devem ter se surpreendido, mas quando o mundo soube que se tratava de um ex-pastor de ovelhas e um capitão da Guarda Real do Imperador Haile Selassie, tenho certeza que houveram defuntos que se remexeram no túmulo.
Abebe Bikila escreveu o seu nome na história do esporte mundial como o primeiro homem a ganhar duas vezes a maratona. A primeira vez em Roma e a segunda em Tóquio quatro anos após, e só não ganhou a maratona da Cidade do México em 1968 porque fraturou um pé. Em ambas as vezes estabeleceu recordes mundiais, sendo que em Roma cruzou a linha de chegada quatro minutos antes do segundo colocado. Sendo questionado sobre a sua estratégia durante a corrida, Bikila declarou que estabeleceu como ponto de referência para a sua arrancada final rumo à vitória o obelisco de Axum, monumento que fora retirado da Etiópia pelos italianos quando da ocupação do país e que fora posicionado a 1,5 quilômetros de distância do ponto de chegada. Disse também que ainda tinha fôlego para correr mais 10 quilômetros após concluído o percurso da prova. Quando correu em Tóquio em 1964, Bikila, que se submetera a uma cirurgia de apêndice 5 meses antes, usou sapatilhas apenas por imposição da organização dos jogos porque ele corria melhor descalço do que calçado.
Para o povo da Etiópia o famoso maratonista tem uma importância que transcende o âmbito do esporte e representa um marco na luta contra a intolerância, a discriminação, a prepotência e a arrogância de todos aqueles, nações ou indivíduos, que usando da força militar, política ou econômica tentam humilhar e submeter os demais à sua vontade. Como não podia deixar de acontecer, a vitória de Abebe Bikila na maratona das Olimpíadas de Roma de imediato trouxe à memória do povo etíope a vergonhosa invasão sofrida pelo seu país, só que a partir de então o povo etíope pôde dizer de peito aberto: "MUSSOLINI PERDEU UM EXÉRCITO PARA CONQUISTAR ETIÓPIA, MAS APENAS UM GUERREIRO DESCALÇO CONQUISTOU ROMA".
No ano seguinte às olimpíadas da Cidade do México, Abebe Bikila sofreu um acidente automobilístico com o Volkswagen que recebera do governo do seu país como prêmio, ficou paraplégico e a partir de então passou a participar de provas esportivas para deficientes físicos, que mais adiante resultaram nas para-olimpíadas de hoje. Faleceu em 1973, vítima de derrame cerebral. Compareceu ao seu funeral nada menos do que 70.000 pessoas que foram reverenciar o grande herói nacional.
Em 1974 Haile Selassie, o 225º imperador de uma dinastia que remontava o Rei Salomão e a Rainha de Sabá, foi deposto por um golpe militar vindo a falecer em agosto do ano seguinte. No ano de 2000 os seus restos mortais foram retirados de uma tumba no porão do palácio presidencial e finalmente enterrados com todas as honras na Igreja Ortodoxa Etíope, cerimonial que contou com a presença da família do músico Bob Marley, grande admirador do monarca.
Colegas de todas as origens, gostaria de aproveitar a oportunidade para parabenizar aos atletas brasileiros que defenderam as cores do nosso país lá no oriente e, falando em monarquia, parabenizar um nadador que tem nome de imperador, parabenizar também aquelas meninas do vôlei que jogam para danar e aquela mulher que dá cada pulo da peste e tem nome de caldo de galinha.
Uma boa semana para todos e que descalços ou calçados tenhamos força para vencer cada quilômetro da maratona da vida.
Saúde e paz,
Virgílio Agra
PS: O texto a seguir é tido como extraído do discurso de Haile Selassie na Liga das Nações, mas infelizmente não posso atestar a sua autenticidade. Quem sabe alguém tenha acesso a uma fonte que possa nos dar a certeza?
"Eu, Hailé Sélassie, Imperador da Etiópia, estou aqui para reclamar justiça para com meu povo, bem como a assistência que há oito meses passados prometeram a ele, quando , na ocasião, 50 nações concordaram que uma agressão, violando os tratados internacionais, havia sido cometida contra ele. Não há precedente de um chefe de estado ter vindo falar nessa assembléia, como não há precedente de um povo ser vítima de tal injustiça, estando no presente abandonado e colocado em risco de vida por seu agressor. Igualmente nunca se viu o exemplo de um governo proceder o sistemático extermínio de uma nação por meios bárbaros, violando as mais solenes promessas feitas pelas nações da terra de não usar contra seres humanos inocentes as injurias do gás venenoso. É para defender um povo que luta pela sua antiga independência que o chefe do Império Etíope veio até Genebra para cumprir com o seu dever, depois dele mesmo ter lutado no comando dos seus exércitos.
Peço a Deus Todo-Poderoso que ele poupe as nações do terrível sofrimento que recentemente infringiram ao meu povo, sofrimento que os que me acompanham aqui foram as testemunhas horrorizadas. É meu dever informar aos governos reunidos em Genebra da responsabilidade que eles têm sobre as vidas de milhões de homens, mulheres e crianças, do perigo mortal a que eles estão submetidos, descrevendo aqui o destino que sofre a Etiópia. O governo italiano não faz a guerra somente contra os guerreiros, mas contra toda a população, ainda que afastada das hostilidades, com a intenção de aterrorizá-los e exterminá-los".
"...Eu jamais acreditaria que todas as nações do mundo, entre as quais as mais poderosas da terra, pudessem acovardar-se diante de um único inimigo. Mas, diante de Deus, nenhuma nação é melhor do que outra".
E profetizando terminou:
"Que resposta devo levar ao meu povo? Hoje somos nós, amanhã serão vocês."

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