sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O fogueteiro e o andor de Senhora Santana


Altar da Igreja Matriz de Senhora Santana - 1964

Colegas de todas as orientações religiosas,

Aconteceu nos tempos em que eu era menino, usando calças curtas e cabelo raspado na máquina zero, sobrando apenas um tufo de cabelo no cocuruto. Era dia da padroeira de Santana do Ipanema, e as ruas da cidade estavam tomadas por uma multidão acompanhando a procissão. Nos tempos em que não havia trio elétrico, nem paradas de orgulho de qualquer coisa, eram a fé do povo, o carisma do Padre Cirilo e o andor ornamentado por Dona Glacira que atraíam gente de toda a região daquele sertão alagoano. Era muita gente e, como eu era pequeno, tenho certeza de que tinha alguém segurando minha mão. A bem da verdade, não me lembro de quem era a mão, mas sou capaz de apostar de olho fechado que era a mão de mamãe, porque, zelosa como era e ainda hoje é, não acredito que ela delegaria esse encargo para “Seu Ninguém”. Eu me lembro bem das pessoas acotovelando-se para chegar perto da santa, algumas tentando apenas tocar no seu andor, enquanto outras faziam questão de carregá-lo, revezando-se continuamente no cumprimento de tamanha honraria. Apesar da aglomeração e do aparente caos, havia um preceito coletivo que garantia o direito de cada um carregar a imagem de Senhora Santana durante um trecho do seu longo cortejo.

Papai nunca gostou muito de multidão e, por uma questão de prudência, preferia acompanhar a procissão guardando certa distância daquela aglomeração em torno da santa. Hoje, depois de tantos anos, eu acho que faria a mesma coisa, mas, naquele dia, minha vontade era exatamente o oposto. Eu queria acompanhar a procissão ao lado da santa, admirando a charola e vendo o revezamento frenético dos homens que a carregavam. Quando eu disse o que queria, minha mãe deu a resposta mais previsível do mundo:

- Não.

Mas aquele dia de julho de um ano qualquer da década de 60 foi diferente de tantos outros. Eu estava determinado a fazer o que queria e passei a insistir. Não sei se por ficar incomodado com a minha insistência, ou por achar que aquela oportunidade poderia ser um bom treino para minha vida futura, papai decidiu que eu poderia sozinho acompanhar a procissão. Sabendo que ela terminaria na praça em frente à Igreja Matriz, antes que me deixasse partir falou:

- Vá e quando a procissão terminar, a gente espera você em frente ao Ferrageiro.

Referia-se à sua loja que ficava exatamente em frente à igreja, do outro lado da praça. Acatei sua ordem e rapidinho me embrenhei na multidão, subindo e descendo as ladeiras da cidade. Apesar de aquela decisão não ter tido a concordância do lado materno dessa história, acho que papai sabia que eu já conhecia o traçado de todas as ruas do bairro, como também que aquela situação seria importante não apenas como uma experiência para mim, como também para eles.

Naquele tempo, um elemento que não podia faltar nas procissões era o fogueteiro. Esse profissional ia acompanhando a procissão e, de tempos em tempos, soltava um foguete, cujo estouro servia para avisar a população tanto do início como da aproximação do cortejo. Apesar de eu já entender essa dinâmica, confesso que nunca tinha visto alguém soltar um foguete. Após percorrer uma rua ou duas de olho fixo no andor, minha atenção foi atraída pelos “papoucos” dos foguetes. Comecei a prestar atenção nas suas trajetórias até que consegui chegar perto do fogueteiro. Conversando com meu velho amigo do tempo da escola primária, Luiz Euclides, ele, além de lembrar-se do homem, lembrava também do seu nome:

- Era Seu Zuza, um senhor de cor clara, cabelos agastados, grande e gordo.

Na verdade ninguém chegava perto demais, Seu Zuza e o ajudante garantiam uma verdadeira clareira naquela floresta humana. Vi vários foguetes subindo chiando em direção ao céu, vi um deles explodir antes de ganhar altura e vi os “cotocos” de dedos na mão de Seu Zuza, observações suficientes para satisfazerem a minha curiosidade e despertarem a minha prudência.

Acho que aquele dia foi importante para um bocado de gente. Foi importante para o povo do sertão que, por devoção ou fé, reverenciava a santa padroeira. Foi importante para papai que colocou pela primeira vez à prova aquilo que viria a ser a minha independência. Foi importante para mim que pude corresponder à sua expectativa e foi importante para minha mãe que naquele dia acompanhou a procissão rezando com mais fervor. Após tantos anos, isso pode parecer para alguns apenas uma história besta de menino, mas, na verdade, aquela situação foi para a história da minha vida uma dentre tantas lições que aprendi com meu pai, a quem agradeço não apenas pelas suas lições, mas também pelo seu exemplo.

No último mês de agosto, papai completou 78 anos. Desejei dar uma passadinha no sertão para lhe dar um abraço, mas minhas férias tinham acabado e eu já havia retornado ao meu trabalho. Queria estar junto dele, relembrar velhas histórias e, quem sabe, ouvir novas, que pudessem um dia ser recontadas, transmitindo memórias, lições e registrando para a posteridade os diversos personagens que compõem a história do sertão, mas lembro-me que, diante de uma ocasião semelhante, ele foi taxativo:

- Primeiro vem a obrigação, depois a devoção.

É por conta de lições como essas, que tenho que me contentar em compensar a distância que nos separa escrevendo meus causos, lembrando o tempo em que eu andava pelas ruas segurando nas mãos de papai e mamãe. Tanto eu, como eles gostaríamos de estar mais próximos uns dos outros, mas sabemos que mais importante do que o tempo que passamos juntos é aquilo que vivemos quando estamos juntos.

Meus colegas, mais uma vez gostaria de desejar a todos uma boa semana e, ao mesmo tempo em que homenageio meu pai pelos seus 78 anos, peço as orações de todos em prol da minha mãe, que hoje estará se submetendo a uma cirurgia delicada.

Saúde, luz e paz!

Virgílio Agra

(Escrito em 17/10/2011)

Além da sua significância para a religiosidade Católica, as procissões tanto recebem influência da cultura popular, como também a influenciam. Um bom exemplo disso é a música Procissão, composta por Gilberto Gil e aqui interpretada pelo grande Luiz Gonzaga.


terça-feira, 13 de agosto de 2013

Uma legião de estrangeiros

Fim da viagem em Bruges – Bélgica
900 anos de história.

Colegas de ambos os lados do mar

Se alguém disser para vocês que, falando inglês, vocês vão para qualquer parte do mundo, eu aviso, é mentira. Na viagem empreendida por este caeté e família ao Velho Continente, confesso que o meu "do you speak english" foi muito útil na Holanda, mas nos demais países a conversa foi outra. Nas terras italianas a responsável pela pousada onde nos hospedamos era colombiana e aí apelamos para o velho conhecido "portunhol", mas, nas ruas de Roma, a origem latina comum ao italiano e ao português falou mais alto que as receitas prontas dos adeptos da língua de Shakespeare.

Tanto a semelhança entre os idiomas quanto o jeito comunicativo dos italianos, bem parecido com o jeito dos brasileiros, facilitou muito a comunicação, mas não impediu que nos atrapalhássemos em alguns momentos. Por indicação do dono da pousada, fomos a uma lanchonete que tinha um sorvete fabuloso. Chegando lá, a casa estava cheia e os funcionários corriam de um lado para outro tentando atender a todos. A coisa tava de um jeito que entender como o serviço funcionava já foi uma conquista, mas o problema maior era saber quais eram os sabores dos sorvetes, porque em cada um deles havia uma plaquinha escrita apenas em italiano. Com a ajuda de uma portuguesa que estava na fila consegui identificar alguns sabores, sendo alguns velhos conhecidos e outros que eu nunca tinha ouvido falar. Porém, tinha um sorvete de cor vermelho vivo que me dava água na boca só de olhar, com uma plaquinha escrita a palavra FRAGOLA. Eu olhava aquele sortimento todo e os olhos só paravam no tal do FRAGOLA. O único "Frajola" que eu conhecia era o parceiro do "Piu-piu" dos desenhos animados e a portuguesa já tinha saído e eu não tinha como tirar a dúvida. Finalmente resolvi escolher este sabor e qual não foi minha surpresa, quando descobri que FRAGOLA era MORANGO, um sabor que eu conhecia desde menino quando chupava picolé da Sorveteria Maringá lá em Santana do Ipanema.

Quando saímos de Roma, passamos por Florença onde, além de nos deliciarmos com o acervo de obras de arte da família Médici, aproveitamos a oportunidade e fomos a uma feira local onde compramos presuntos e pães feitos em casa e vendidos pelos próprios produtores, a exemplo do que ocorre nas feiras livres em qualquer parte do mundo. Quando nos apresentávamos como brasileiros todos sorriam e nos dispensavam uma atenção toda especial.

Florença também serviu para mim como ponto de partida para uma visita aos campos de batalha da FEB na Segunda Guerra Mundial. Graças ao apoio do ítalo-brasileiro Mário Pereira, pude conhecer os principais pontos onde se deram as batalhas dos nossos pracinhas. Foi um passeio inesquecível, não apenas pela beleza da região e pelas histórias contadas em detalhes por Mário, mas o fato de ter um tio que participou daquelas batalhas me proporcionou a grata oportunidade de resgatar nas terras d'além mar, um pouco da história da minha própria família. Outra coisa muito boa foi sentir a atenção que as pessoas daquela região dispensavam a nós "brasilianos". Confesso que me senti orgulhoso de ser parte deste grande país, cujos filhos conseguiram firmar laços de fraternidade com um povo distante, apesar de todos os obstáculos, inclusive linguísticos.

Finalmente chegamos à França e acho que foi em Paris o lugar onde tivemos a experiência linguística mais interessante. Eu sempre tinha ouvido dizer que os franceses não gostavam de falar inglês e algumas fontes chegavam a referir-se a uma suposta "má vontade" dos franceses em falar numa língua diferente da sua própria. Porém, minha filha já tinha me alertado que eles tinham certa dificuldade em lidar com a língua britânica e eu, sinceramente, acho que esta hipótese tem algum fundo de verdade. O proprietário do apartamento que alugamos em Paris, Sr. Edgard, por exemplo, foi de uma gentileza exemplar, no entanto, na hora de nos comunicarmos tínhamos que usar um misto de inglês, espanhol, português, mímica e boa vontade, porque a dificuldade de comunicação era enorme, apesar do esforço que todos desprendiam.

Quando da nossa passagem pelas terras gaulesas, já tínhamos cumprido mais da metade do nosso roteiro de férias e isso permitia fazer algumas comparações na nossa experiência linguística. Se na Holanda o idioma era impronunciável, os batavos compensavam falando inglês. Da mesma maneira, os cardápios, folhetos turísticos e até algumas placas indicativas eram escritas em holandês e em inglês e isso nos permitiu conhecer muito daquele pequeno e belo país. Na França a situação era quase inversa, não falávamos nada em francês e era raro encontrar nas ruas quem falasse inglês, mas, por outro lado, nos museus que visitamos tivemos uma grata surpresa, lá encontramos não apenas atendentes que falavam português, mas também havia folhetos, catálagos, audio-guias e livros com o acervo dos museus tudo em português.

Outro aspecto interessante que pudemos observar nas terras européias foi o comportamento do mercado informal. Enquanto que na Holanda era proibido pedir esmolas, em Roma pudemos ver profissionais da mendicância nas ruas. Por sua vez, o comércio ambulante na Cidade Eterna era praticado principalmente por pessoas de origem asiática, já em Paris o mercado informal era dominado pelos africanos. Quando estávamos no Trocadero, um parque elevado de onde se avista a Torre Eifel e o seu entorno, um vendedor ambulante ouviu o nosso falar e aproximando-se falou com sotaque;

 - Brasileiro.

Era um jovem de uns vinte e poucos anos e pela cor não deixava dúvida, era africano legítimo. O cara era preto de um jeito que eu não me lembro de ter visto um igual aqui no Brasil. Puxei conversa e fiquei sabendo que ele era do Senegal, antiga colônia francesa. Ele contou que veio para a França porque na sua terra natal não havia oportunidade de trabalho, mas a vida na Cidade Luz não era mole não. De fato, quando eu estava ao pé da Torre Eiffel, observei uma estranha movimentação dos vendedores ambulantes. Todos começaram a caminhar numa só direção, apressadamente, como se estivessem em fuga. Ficou claro para mim que havia chegado à área algum tipo de fiscal da prefeitura. Após algum tempo, percebendo que os "homi" tinham ido embora, os camelôs começaram a voltar como uma onda que vai e depois vem. É muito engraçado país do primeiro mundo, até ambulante quando foge do "rapa", o faz discretamente. De uma maneira geral, no exterior as pessoas têm o Rio de Janeiro como cidade de referência do Brasil, o jovem senegalês, pelo contrário, citou a cidade de Salvador. Como prova da afinidade entre a Bahia e a África, em dado momento da nossa conversa ele chegou a cantarolar o refrão da música "Canto para o Senegal". Após os cumprimentos de praxe o jovem seguiu o seu caminho batalhando o seu sustento e eu segui o meu, somando mais uma vivência numa viagem rica, culturalmente.

Outro aspecto interessante observado no mercado informal parisiense, foi a presença de artista populares batalhando uns trocados nas suas ruas e metrô. Nos nossos deslocamentos metroviários frequentemente embarcava no mesmo vagão algum artista que tocava uma musiquinha e depois passava o chapéu para colher umas moedas. Coincidentemente, tinha uma estação onde sempre embarcava o mesmo artista, portando uma caixa de som onde tocava um "play back" e ele cantava “La Bamba”, toda vez.

Aproveitamos muito bem cada minuto que passamos na capital francesa até que chegou a hora de embarcar num trem velocíssimo em direção à Bélgica onde fomos conhecer a cidade medieval de Brugges. Mais uma vez não vou desperdiçar o tempo de vocês descrevendo os encantos de uma "cidade cartão postal', mas não poderia deixar de comentar o quanto foi bom caminhar em ruas onde várias casas ostentavam datas de mais de trezentos anos, comer comida irlandesa e tomar cerveja belga produzida pela Inbev, a multinacional belgo-brasileira da cervejaria. Coisas do mercado global... coisas do mercado global.

É, pois, escrevendo esta quarta narrativa, que concluo as aventuras deste simples caeté nas terras d'além mar. Desejando que todos tenham uma ótima semana e que aproveitem bem todas as lições que a vida nos proporciona, tanto de um lado, como do outro do mar.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra

(Escrito em 10/10/2011)

PS: Apelidamos nossa viagem de “Invasão ao Velho Continente” e elegemos uma música que simboliza muito bem nossas impressões na viagem. Com uma majestosa apresentação acústica, segue aqui “Nós vamos invadir sua praia”, de Roger Moreira e a Banda Ultraje a Rigor.


terça-feira, 30 de julho de 2013

E os meus caminhos me levaram a Roma


Na Basílica de São Pedro

Colegas de todos os caminhos

Será que todos os caminhos levam a Roma? Não sei se "todos", mas o meu percurso no velho continente passou por lá.

Chegamos a Roma numa manhã de muito sol prenunciando qual seria o clima da nossa estada na terra dos Césares. Pegamos um ônibus no aeroporto de Ciampino até a estação Termini, no centro da cidade, de onde fomos caminhando até a nossa pousada, localizada estrategicamente para facilitar nossos deslocamentos.

Após nos alojarmos demos uma volta na vizinhança onde descobrimos uma pizzaria simples, porém muito acolhedora, de propriedade de um egípcio chamado Mohamed. Após recarregarmos as baterias, de posse de um mapa e dicas dadas pelo pessoal da pousada, fomos "bater perna" pelas ruas de Roma. Caminhar pelas ruas de uma cidade tão antiga já é em si um grande atrativo turístico, mas nós não poderíamos deixar de aproveitar a oportunidade para visitarmos algumas igrejas que, com certeza, teriam muito a enriquecer o passeio. O problema é que, por conta do calor, minha esposa e uma das filhas resolveram usar shorts e camiseta, trajes pouco adequados à visita a um templo. Elas só não ficaram do lado de fora porque os padres, cansados dos problemas que a limitação ao acesso provocava, passaram a disponibilizar peças de tecido que os visitantes usavam para cobrir pernas e ombros. Resolvido o problema, após uma tarde de muita caminhada, fotos, comentários e todo o ritual próprio de quem descobre um novo mundo, pegamos um metrô e fomos visitar a mais famosa fonte de Roma.

Aqui no Brasil nos acostumamos a não confiar na água fornecida pelas empresas de abastecimento nacionais, um costume por demais interessante para as empresas que comercializam as águas minerais. Na Europa, pelo contrário, a água da torneira é sempre de boa qualidade e comprar água engarrafada pode satisfazer um hábito tupiniquim, mas não é nada racional. Ao longo de toda a viagem nunca nos separamos das nossas garrafinhas que eram regularmente abastecidas nas fontes, pousadas e mesmos nas torneiras dos bares, lanchonetes e restaurantes onde nos alimentamos. Naturalmente, algumas fontes não têm água adequada ao consumo, mas a potabilidade da água, ou não, encontra-se normalmente sinalizada. A Fontana di Trevi é um desses exemplos de fonte cuja água, atualmente, não deve ser consumida. No passado, no entanto, era lá onde jorrava água de boa qualidade trazida por um aqueduto romano desde antes da era cristã. No século XVIII foi construído um monumento para decorar a fonte que transformou o local num dos pontos mais charmosos da cidade. O local é simplesmente lindo, mas a "mundiça" de gente é tão grande que termina por prejudicar a beleza do local. Para completar, espalharam o boato que aquele que fica de costas para a fonte, faz um pedido e joga uma moeda na água por sobre a cabeça tem o sonho realizado. O resultado é que em redor da fonte fica um monte de gente besta jogando moeda na água como se esse gesto fosse resolver os problemas do mundo.

No dia seguinte pegamos um metrô próximo da pousada e fomos caminhar nas ruínas do Palatino, Fórum Romano e Coliseu. Tentar descrever tudo que foi visto ou apreendido na visita àquele parque arqueológico geraria um texto tão longo que se tornaria enfadonho, mas teve umas coisinhas que eu não sabia e que me chamaram a atenção. Enquanto os templos e grandes monumentos eram construídos de pedra, conforme consta nas fotos dos livros de história, pude observar que as residências eram construídas em alvenaria. As paredes eram construídas como se fosse um sanduíche, sendo a parte externa construída de tijolo e o miolo era preenchido com uma argamassa misturada com pedras ou pedaços de tijolos, a exemplo de como é, nos dias de hoje, uma argamassa de concreto. Ao atingir a altura desejada, as paredes eram unidas por arcos podendo a parte de cima ser também preenchida com aquela argamassa, formando uma laje que poderia servir de base para a construção de um novo andar. O fato é que pude observar que esta técnica permitia a construção de edificações muito altas, o que equivaleria, com a tecnologia de hoje, a prédios de vários andares.

O nosso último dia em Roma foi escolhido para nossa visita ao Vaticano. Acreditávamos que, por ser uma segunda-feira, haveria menos gente nas filas para a entrada do museu... ledo engano. Pegamos o metrô bem cedo e quando chegamos ao local a fila já estava dobrando a esquina, mas, apesar de longa, caminhou relativamente rápida. Na compra dos ingressos fiquei surpreso quando o atendente, literalmente, jogou os bilhetes sobre o balcão. Vocês sabem aquele jeito que jogador de baralho faz quando joga sobre a mesa aquela cartada que encerra a partida? Só faltou o cara gritar:

 - BATI.

Paguei a quantia e peguei os ingressos meio desconfiado. Pensando, o que teria acontecido para o rapaz proceder daquela maneira? Felizmente, após observar melhor outras pessoas e outros lugares, percebi ser um jeito italiano sem nenhuma maldade, apenas diferente daquilo ao qual eu estou acostumado.

Já tinha ouvido falar que no Vaticano tinha muito ouro, metais e pedras preciosas. Confesso que não foi exatamente isso o que vi. Pude apreciar muitas obras de arte que, pelas suas qualidades, são de valor inestimável, mas na sua grande maioria eram pinturas nas paredes e tetos, retratando passagens bíblicas, elaboradas por grandes mestres das artes. Mas uma característica do museu fez com que eu me sentisse no carnaval de Salvador. A quantidade de gente era tão grande que se o cabra levantasse o pé do chão, iria até o final da galeria num pé só.

Ao sairmos do museu demos a volta no quarteirão que compõe o Vaticano e fomos à Basílica de São Pedro. Como em outras igrejas de interesse histórico e artístico, havia peças de tecidos para cobrir as pernas e ombros desnudos dos desavisados, só que dessa vez a minha turma estava prevenida. O curioso é que, apesar da limitação à exposição do corpo em carne e osso, quando se tratava de nudez em mármore a tolerância era bem maior, eis que a basílica era decorada com várias esculturas com figuras femininas com os seios nus. Falando em escultura, além da Peitá, de Michelângelo, obra maravilhosa que dispensa comentários, havia uma estátua de São Pedro em condições bastante interessantes. Produzida em mármore no século XIII, ao longo do tempo peregrinos beijaram e afagaram tanto os pés do santo que terminaram desgastando os dedos do coitadinho. Resultado, São Pedro tá lá, sentadinho, só com os cotocos de pés, sem um dedo sequer.

Roma é, sem dúvida nenhuma, uma cidade única. Com sua história milenar, proporciona aos seus visitantes tanto o contato com o que existe de melhor na história, na arte e na cultura, como também com problemas tão frequentes nas grandes cidades. Diferentemente das terras batavas, plana e cheia de bicicletas, a Cidade Eterna é situada em terreno ondulado. Este fator, aliado a uma população de quase três vezes a de Amsterdã, influencia fortemente no trânsito da cidade onde chama a atenção a grande quantidade de motonetas e mini carros. Enquanto na Holanda os ônibus passam nos pontos em horários precisos a realidade romana não foge àquilo que temos no transporte público deste grande país. Os ônibus atrasam, vêm lotados e têm um sistema de tarifação que acredito, propicia uma severa evasão de receita. Foi lá onde mais caminhamos e foi de lá que partimos num trem excelente a mais de 230 quilômetros por hora. Não sei se todos os caminhos levam a Roma, mas achei bom que os meus passaram por lá.

Caros colegas, ao mesmo tempo em que desejo a vocês uma boa semana, espero que o criador ilumine o caminho de todos.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra

(Escrito em 20/09/2011)


PS: Comparando a cultura e o desenvolvimento que encontramos no Velho Continente com a realidade deste grande país, mas também verificando a transitoriedade dos antigos impérios que um dia foram dominante e em outro foram destruídos, segue aqui a música “Inútil”, de Roger Moreira, com a Banda Ultraje a Rigor.


quarta-feira, 24 de julho de 2013

Histórias de guerra e degustações de cerveja


Foto obtida na Casa Mãe – Asten-NL

Colegas de todos os pontos de vista

Se tem uma coisa que eu aprendi ao longo da minha vida é que uma viagem pode proporcionar muito mais do que aquilo que está disponível nas galerias dos museus, nas mesas dos restaurantes e nas paisagens do tipo "cartão postal". Durante minhas férias nas terras d'além mar, na medida das minhas limitações, procurei ficar atento às oportunidades de interagir com seus habitantes, ao mesmo tempo em que procurei observar o cotidiano dos lugares onde passei, retirando desse contato conhecimentos importantes que jamais constarão num catálogo turístico.

Foi numa manhã de quarta-feira, dia de São Pedro, que partimos de Amsterdã para dar a volta por outros países da Europa. Pegamos um trem para Helmond, depois um ônibus até Asten no sul da Holanda, onde fui encontrar uma pessoa que não via há uns 20 anos, a minha querida Irmã Letícia, fundadora e diretora da escola em que cursei o ensino primário. Não vou aqui discorrer sobre a emoção de poder abraçá-la e poder ouvir sua voz novamente, porque emoção é sentimento e isso não tem como ser descrito. Mas eu não poderia deixar de comentar o quanto a nossa chegada foi festejada, não de maneira formal, mas pela maneira afetiva com que nos trataram. Alguém lembrou que naquele dia a Congregação estava completando 50 anos do início das suas atividades no Brasil e isso foi motivo para mais alegria. Ao comentar com Irmã Letícia sobre o tratamento que nos era dispensado ela simplesmente disse:

 - Quando fomos para outros países como missionárias, criamos laços afetivos com as pessoas desses países, de modo que, quando elas vêm até aqui, são como parentes nossos que nos visitam e como todas nós somos irmãs é como se vocês fossem familiares delas também.

A casa onde as freiras vivem é algo totalmente diferente daquilo que eram os antigos conventos. A Casa Mãe, como é chamada, é um conjunto de prédios de três pavimentos, dotado de portaria, refeitório, elevador, lavanderia, capela e todos os equipamentos necessários a garantir uma morada decente aos seus residentes. Além do conjunto de prédios há também uns jardins, um pomar, um pequeno bosque e um cemitério onde, além dos túmulos, tem também um muro onde constam os nomes daquelas que morreram longe da sua pátria. Se alguém pensava que as freirinhas vivem lá apenas a rezar se enganam. Aquelas que ainda têm condições executam alguns trabalhos, colaborando assim com os serviços da casa e quem quiser conversar com elas fique a vontade, pois elas estão ligadas nas notícias do mundo inteiro.

Durante nossa permanência em Asten aproveitamos para dar uma volta na pequena cidade. Nossa primeira parada foi uma igreja consagrada a Nossa Senhora da Apresentação, construída em estilo gótico, com belos vitrais e toda a grandiosidade desse estilo arquitetônico. Convém citar que na Holanda o lado norte é predominantemente protestante enquanto o lado sul é católico. Após uma volta na praça e uma xícara de café, voltamos a caminhar e avistamos um pequeno parque com um monumento que nos chamou a atenção. Constava de uma figura humana deitada sobre uma placa de pedra em cuja borda estavam gravados vários nomes de pessoas e umas datas. Percebi que eram datas de nascimento e morte sendo que estas últimas coincidiam com o período da Segunda Guerra Mundial. Eu sabia que aquela região tinha sido palco de combates na guerra, particularmente durante a famosa Operação Market-Garden, aquela da ponte longe demais. Fotografei o monumento e depois perguntei a Irmã sobre o que ele tratava. Ela me contou que durante a guerra o prefeito da cidade ajudava clandestinamente aqueles que eram perseguidos pelos invasores. Quando os alemães descobriram, arrastaram-no até aquele local, executaram-no e, durante muito tempo, não permitiram que o seu corpo fosse removido para sepultamento. Após a guerra a população de Asten ergueu o monumento homenageando ele e todos os cidadãos da cidade que tombaram vítimas do nazi-facismo.

A Segunda Grande Guerra é um evento muito importante na história do século vinte e eu já havia lido muito sobre ela. Mas, apesar de já ter se passado quase 70 anos, confesso que me perturbou um pouco ver de perto locais que foram cenários dos seus terríveis acontecimentos. Eu sabia que Irmã Letícia tinha vivenciado a guerra, mas naqueles dias em Asten foi a primeira vez, como adulto, que eu tive a oportunidade de conversar com ela sobre este assunto. Ela contou que seu pai tinha uma boa condição financeira, mas a escassez de comida era tanta que sua família passou fome. Próximo a sua casa morava uma mulher que, provavelmente pela falta de comida, estava doente. Seu marido não trazia comida para casa, talvez porque não conseguisse, talvez porque comesse tudo o que porventura conseguia. Solidária com a situação da mulher, sua mãe separava um pouco daquilo que tinham e mandava que Letícia levasse para ela. Temendo que o marido comesse aquilo que era enviado, esperava que o homem saísse de casa e mandava a menina com a orientação de que só voltasse após a mulher comer tudo, dando a desculpa de que era para trazer de volta a vasilha. Seguindo o mesmo pensamento humanístico um dos seus irmãos começou a participar de uma organização clandestina que ajudava judeus e outros perseguidos pelos nazistas. Seu pai sabia das atividades do filho e guardava sigilo para sua própria segurança, até que um dia ele foi preso pelos alemães e levado para um campo de concentração. Após a guerra, a mulher disse que eles foram anjos enviados por Deus para trazê-la de volta à vida, porém seu irmão nunca voltou para casa. A família soube que ele morreu no campo de concentração e foi enterrado numa vala com outras vítimas, seu corpo nunca foi identificado.

Partimos de Asten de manhã em direção à Dusseldorf, Alemanha, onde minha prima Andréia nos esperava. Nossa passagem pela Alemanha seria breve, visto que, no dia seguinte, já tínhamos um vôo marcado com destino a Roma, mas uma visita à cidade de Colônia superou qualquer expectativa, por mais otimista que fosse. Àquela altura eu não poderia imaginar que a Catedral de Colônia seria o mais grandioso monumento que eu iria conhecer em toda aquela viagem.

Do mesmo jeito que os batavos do outro lado da fronteira, os germânicos também têm muitas cicatrizes da história do último século. Colônia foi simplesmente arrasada pelos bombardeios, as pontes sobre o Reno foram destruídas, mas, por incrível que pareça, sua catedral permaneceu praticamente intacta. Uns podem achar que foi milagre, outros dizem que houve negociação entre os contendores para que aquele patrimônio da humanidade fosse poupado. A verdade talvez nunca saibamos, mas, afinal de contas, se o próprio homem levou 600 anos para construí-la, seria triste vê-la desaparecer no tempo de uma explosão. Por via das dúvidas, os padres retiraram todos os seus vitrais, antes de começarem os "papoucos" das bombas. Após a guerra, os danos sofridos foram reparados e os vitrais centenários foram recolocados para deleite de uma família caeté. Eu fiquei besta com o tamanho da igreja, cruzei seu pátio, atravessei a rua, me espremi contra os prédios do outro lado e não consegui enquadrá-la na câmera fotográfica simples que possuo. No pátio da catedral tem uma réplica em tamanho natural do pináculo das duas torres. De acordo com placas escritas em vários idiomas, eu juro que tinha uma em português, a peça tem 9,5 metros de altura, mas o que eu queria saber de verdade era: Quem foi o cabra que botou aquele troço lá em cima a 157 metros do chão?

O marido de Andréia, Tosten, é um sujeito boa praça que, com muito bom humor, costuma dizer que segue a recomendação da medicina de tomar no mínimo 2 litros de água todos os dias, com a ressalva que a água que ele toma tem 5% de álcool. Fiel à tradição cervejeira do seu país, Tosten nos falou sobre a ritualística que envolve a produção e o consumo da bebida nacional. Segundo ele, cada tipo de cerveja envolve um modelo específico de copo, modo de servir próprio e mais um monte de outros detalhes. De todos estes o mais interessante foi a forma de brindar. Enquanto pelo mundo a fora as pessoas brindam tocando as bordas superiores dos copos, na região de Colônia a tradição manda que o brinde se faça tocando os fundos dos copos. Justificando tal hábito ele dizia sorrindo:

 - Mulher e cerveja se tocam por baixo.

E foi entre um brinde e outro que as horas foram passando até eu cair na cama como uma pedra, no dia seguinte iria se iniciar uma nova etapa da viagem.

Caros colegas, espero que as cervejas do final de semana não atrapalhem a segunda-feira de vocês e, sem medo de ser redundante, desejo que todos tenham uma semana não apenas produtiva, mas principalmente de paz.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra

(Escrito em 28/08/2011)

PS: Dentre as músicas que embalaram nossa viagem, mais uma que merece ser lembrada é “Vamos fugir” com a Banda Skank.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Nu é grátis, semi-nua não.


Colegas de todas as línguas

Se você está lendo este texto pode até pensar que é alfabetizado, mas tenha cuidado, pois tudo é relativo.

Durante minhas férias pude realizar um velho sonho, conhecer a Europa. Após uma viagem de doze horas, incluindo uma conexão em Lisboa, eu, minha esposa e minha filha caçula chegamos a Amsterdã. A lentidão no desembarque do avião e a demora na restituição de bagagem foi para mim uma coisa normal, nada que eu não houvera vivenciado em outros aeroportos. Uma vez conferida toda bagagem dirigimo-nos à estação ferroviária que é integrada ao aeroporto. No percurso seguíamos as indicações das placas já que todas elas tinham a tradução para o inglês, mas quando chegamos à estação ferroviária todos os meus conceitos caíram por terra. Também não era para menos, afinal de contas, para todo lado que eu me virava, só via placas escritas em holandês, cheias de consoantes, e eu não fazia a menor idéia do que aquelas palavras significavam. Naquele momento eu me senti como um imigrante nordestino que chegava a São Paulo nos meados do século passado, um verdadeiro analfabeto. Uma vez percebendo que não iríamos entender mesmo aquela escrita, passamos a olhar em redor, até que finalmente identificamos uma bilheteria e aí os pensamentos começaram a entrar em ordem. Deixei as meninas com as bagagens fui até o guichê e, dirigindo-me à atendente, declamei uma frase pré-ensaiada:

 - Good morning. Please, three tickets to this station - e deslizei sobre o balcão um papelzinho com a palavra: HEEMSTEDE - AERDENHOUT.

Eu dou um euro que sobrou da viagem para o cabra que conseguir pronunciar o nome dessa estação. A Holanda é um país lindo e com organização exemplar, mas a língua é impronunciável.

De posse das passagens, procuramos a plataforma de embarque e, após alguns minutos decifrando o quadro de horário dos trens, conseguimos embarcar sabendo que teríamos que fazer uma baldeação na estação de SLOTERDIJK, esta é fácil, pronuncia-se "sloterdaik". Finalmente, chegamos à estação de destino onde tínhamos que pegar um ônibus até o local da nossa hospedagem. Embarcamos no ônibus da Linha 80 e, dirigindo-me ao motorista, recitei aquela famosa frase:

 - Good morning.
Please, three tickets to this bus stop - e mostrei um papelzinho com a palavra: SHOUWTJESBRUG. (A oferta do euro que sobrou continua de pé).

Quem já passou pela experiência de chacoalhar nos ônibus urbanos aqui no Brasil não vai acreditar, pois eis que, no país dos moinhos de vento, em cada parada há um quadro constando os horários em que os ônibus passam pontualmente e, dentro dos veículos, tem um painel onde aparece o nome e horário da parada seguinte bem como das próximas três. Finalmente chegamos ao Bed & Breakfast: My Dream. A proprietária, Leonice, uma brasileira casada com Hennes, um alemão criado na Holanda, hospeda profissionalmente turistas do mundo inteiro, mas o tratamento que nos dispensou fez-nos sentir como se estivéssemos na casa de um parente muito querido.

Quem lê sobre a Holanda sabe que o país tem um histórico de tolerância com questões ligadas a sexo e drogas, mas fiquei admirado quando li num cartaz instalado no ponto de ônibus em frente da casa da Léo o anúncio: "Nu gratis". Eu concordo com a parte da tolerância, mas nudez gratuita pareceu-me um pouco exagerado. Para minha tranquilidade, Léo me explicou que se tratava de uma oferta comercial e que a palavra NU significava, em português, "agora".

Na tarde daquela sexta-feira e no dia seguinte, com o apoio de Leonice e de um casal amigo, Alaíde e Peter, conhecemos Haarlem, cidade onde estávamos hospedados, bem como outros municípios das suas redondezas. Foi num desses passeios que encontramos e pudemos visitar um moinho de vento em plena operação, destinado a produção de farinha de trigo. Do ponto de vista turístico a visita ao moinho foi encantadora, mas do meu ponto de vista como engenheiro e aficionado pelo estudo da história foi simplesmente fantástico. Entrar naquele moinho e percorrer o seu interior, ver as suas engrenagens, sua estrutura, os materiais de que ele é feito, seus mecanismos de manobra e dispositivos de segurança gerou uma quantidade enorme de informações.

No domingo fomos a Amsterdã onde contamos com o apoio de um amigo de minha filha mais velha que, apesar de estar naquela época morando na Holanda, estava, exatamente naqueles dias, em terras portuguesas com certeza. O rapaz, mineiro de nascimento e trabalhador ilegal por ousadia, nos levou ao RIJKSMUSEUM, pelo nome vocês já sabem do que se trata, onde pudemos não apenas conhecer o acervo que retrata a história da idade de ouro dos Países Baixos, como também pudemos nos deliciar com os belíssimos quadros de Rembrandt. Após o almoço, no qual comemos costelas de porco com batata (Bom demais!), fomos caminhar pelas ruas da velha cidade.

Que na Holanda tem mais bicicleta do que gente, isso todo mundo sabe, mas o que chamou a atenção deste caeté foi observar as prioridades dos batavos na hora de tratar os fluxos de tráfego nas suas cidades. Todas as vias são acessíveis às pessoas e bicicletas, sendo que essas últimas têm prioridade sobre os pedestres. Conforme nos aproximávamos do centro da cidade, gradativamente, fomos observando que o acesso de carros de passeio ia ficando cada vez mais restrito, até que chegamos num perímetro onde os únicos veículos motorizados eram os ônibus e os bondes que lá são chamados de TRAM. Outra coisa que me chamou a atenção foi ver nas ruas uma grande quantidade de carros de marcas famosas que aqui no Brasil são acessíveis aos muito ricos, mas confesso que achei simplesmente fantástico ver os motoristas conduzindo seus veículos possantes de maneira serena sem o exibicionismo tão frequentemente visto nas ruas das cidades do nosso grande país.

Caminhando pelas ruas de Amsterdã, nosso "guia por um dia", Guilherme, perguntou se poderia nos levar ao Bairro da Luz Vermelha, uma área da cidade onde a prostituição de homens e mulheres é praticada de forma regulamentada pelas leis holandesas. Diante da nossa concordância, entramos no bairro através da BLOEDSTRAAT (Rua de Sangue), local onde no passado houve uma matança de vários travestis. O relógio indicava que já era noite, mas considerando que o país gozava de horário de verão e ainda por cima fica próximo ao círculo polar, o sol ainda estava alto e iluminava muito bem toda a cidade. Talvez por conta da luz do sol nós vimos apenas um prostíbulo em funcionamento. Seguindo o costume do lugar, a casa possuía vitrines onde, em cada uma delas uma bela garota de biquíni ficava à vista dos passantes. Vindo de um país onde os trajes de banho costumam ser minúsculos, devo admitir que as prostitutas usavam biquínis bem comportados, mas uma coisa é certa, lá "nu" pode ser grátis, mas uma semi-nua não.

Por sugestão de Leonice, resolvemos incluir na nossa programação uma visita à Delft, cidade com quase mil anos de existência e bastante conhecida por sua famosa porcelana azul. A cidade tem como maiores atrativos duas grandes igrejas construídas em estilo gótico que, como outras na Holanda, foram convertidas em templos protestantes. Numa delas, a Nieuwe Kerk, por tradição, são enterrados os membros da família real holandesa. Neste templo que abriga o mausoléu a Guilherme de Orange composto, entre outras coisas, por uma estátua do grande herói nacional, pudemos observar os nichos que abrigavam as imagens de santos que foram simplesmente derrubadas e destruídas durante a Reforma Protestante na Idade Média. Outra curiosidade por nós observada foi o fato destes templos terem sido os únicos em toda a viagem em que tivemos que pagar para visitá-los.

Nesses deslocamentos entre as cidades vi algumas coisas que não pude deixar de admirar. As cidades holandesas são ligadas não apenas por ferrovias e rodovias, como também pelas ciclovias. Lá, você pode percorrer o país inteiro de bicicleta sem precisar disputar espaço com os automóveis. Além disso, até as estradas vicinais são asfaltadas. Mas o que eu mais gostava de admirar eram as fazendas holandesas. O terreno era bem plano e as divisões das áreas ao invés de serem feitas com cercas eram feitas com canais, de maneira que a terra ficava toda quadriculada. O verde cobria tudo, emoldurado pelos inúmeros canais e algumas vezes a gente via pequenas áreas de bosques. Mas surpresa eu tive quando passamos numa fazenda e eu vi umas coisas que pareciam uns rolos de papel higiênico gigantes. Eu tomei foi um susto, considerando o zelo que os holandeses têm pelas suas vaquinhas e que no idioma local vaca pronuncia-se "cu", eu pensei logo: aquilo deve servir para deixar as bichinhas bem limpinhas, para não estragar o gosto do leite. Chegando mais perto pude observar que na verdade eram rolos de feno, cobertos com uma lona apropriada de cor branca. A propósito, vaca em holandês escreve-se KOE, mas a pronuncia é daquele jeito, vocês sabem qual.

Escolher a Holanda como nossa porta de entrada para a Europa foi uma decisão acertada. Poder apreciar a riqueza do seu acervo cultural, a beleza das suas edificações, usufruir do seu transporte público, transitar pelas suas ruas e canais, conhecer suas cidades históricas e sua moderna infra-estrutura nos trás uma gama imensa de percepções que palavras são insuficientes para descrever e apenas o contato direto pode proporcionar. Da mesma maneira que os elementos físicos, a educação dos neerlandeses também nos proporcionou experiências interessantes. Durante nossa visita a Amsterdã, paramos na beira de um canal para comer um lanche quando, de repente, se aproximou de nós um homem mal trajado, com a cara de quem tinha tomado uns goles. A bem da verdade, sua aparência não correspondia ao modelo de alguém muito ajustado à sociedade. Se fosse aqui no Brasil qualquer um pensaria que ele iria pedir dinheiro ou iria ficar conversando besteiras, mas não foi o que se sucedeu. O sujeito havia encontrado próximo de onde estávamos um isqueiro velho, largado no chão. O homem pegou o isqueiro e foi perguntando a todas as pessoas que estavam naquele lugar se alguém era dono daquele objeto. Somente após se certificar que este não pertencia a nenhum dos presentes, anunciou então, em voz alta, que iria ficar com ele. Só então, botou o isqueiro no bolso e foi embora.

Pode parecer coincidência, mas desde que era menino, eu sonhava em conhecer a Holanda. Um pouco por conta de um antepassado, mas principalmente por causa da figura da Irmã Letícia, diretora e fundadora da minha primeira escola. Contar os eventos pitorescos dessa visita é apenas o jeito deste simples caeté compartilhar com vocês a maravilhosa experiência que tive oportunidade de usufruir. Aproveitando a oportunidade, gostaria de desejar a todos uma ótima semana e prometo no próximo contato continuar contando as aventuras de um caeté nas terras de além mar.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra

(Escrito em 13/08/2011)

PS: No decorrer da viagem, várias vezes associávamos os lugares que víamos ou as situações que vivenciávamos a algumas músicas do nosso pop rock brasileiro. Uma delas foi a música Ciúme, de Roger Moreira, aqui tocada numa versão acústica pela inesquecível banda Ultraje a Rigor.




domingo, 30 de junho de 2013

Frivolitê, a arte dos nós.


Colegas de todas as artes

Apesar de se passar algumas semanas em que não mando notícias minhas, gostaria de informar a todos que ainda estou vivo e gozando de boa saúde. Abstive-me de escrever por um tempo por conta de uma pequena sobrecarga de trabalho e de umas subsequentes e merecidas férias, usufruídas nas terras d'além mar do velho continente.

Aproveitando a oportunidade, gostaria de perguntar a todos, quem de vocês sabe o que é frivolitê. Antes que alguns pensem que estou aqui tratando de coisas frívolas, portanto fúteis, sosseguem, frivolitê é uma espécie de renda. Menos conhecida que a renda de bilros, este é um trabalho executado com uma espécie de lançadeira chamada navete e tem origem europeia, provavelmente da França ou Bélgica. Esta arte rara foi, durante muito tempo, praticada pelas mulheres da pequena Poço das Trincheiras, lá no sertão alagoano.

Desde criança vi minha mãe, tias e avó praticando esta arte e ficava admirado com os movimentos hábeis que realizavam. Uma das mãos da artesã ficava numa posição como se ela fosse pegar com os dedos uma fruta de tamanho pequeno, como um limão por exemplo. Uma linha era então passada pelo dorso das pontas dos dedos ficando estendida, formando, digamos assim, uma figura circular. Com a outra mão a navete era manobrada em torno da linha estendida, hora passando por cima e voltando por baixo, hora passando por baixo e voltando por cima, formando pequenos nós, até que finalmente ia surgindo pequenos anéis. De anéis em anéis ia surgindo um conjunto que gradativamente se transformava em peças grandes. Cheguei a ver colchas de cama de casal feitas por elas. Era um trabalho demorado e exigia da artesã não apenas muita habilidade, mas principalmente muita paciência.

Segundo ouvi contar pelos mais antigos, essa arte teria chegado lá nas bandas do Poço das Trincheiras, trazida pelas jovens das famílias mais abastadas que foram estudar em colégios internos. Isso lá pelo início do século XX.

Minha avó Lindalva, contou que quando era mocinha foi estudar num colégio interno, mantido por uma ordem religiosa, na cidade de Palmares, zona da mata meridional do vizinho Pernambuco. Apesar da viagem demorar vários dias, incluindo vários trechos a cavalo, esse tempo foi, segundo ela própria, os melhores anos de sua mocidade. Convém ressaltar que minha avó nunca me falou que aprendera a fazer frivolitê no colégio, sua história apenas confirma a existência desse mecanismo de busca das famílias por educação para seus filhos e filhas. Quando ela foi para Palmares, outras jovens já haviam feito caminho semelhante.

Eu, naturalmente, nunca aprendi fazer frivolitê, afinal de contas esse trabalho era específico para as mulheres, mas na casa dos meus pais nós fomos criados ajudando, de uma forma ou de outra, nos trabalhos domésticos. Minhas irmãs ajudavam minha mãe nas tarefas da casa e eu, num tempo que não havia telefone, fazia o trabalho externo como ir buscar o leite na casa de Dona Iracema, dar recados na casa de vovó ou ir fazer compras no armazém de Seu Zé Acioly ou na padaria de Seu Raimundo. Do frivolitê só sobrava para eu encher as navetes. Às vezes mamãe me dava quatro ou cinco navetes para encher e eu sabia que teria algumas horas a menos de folga naquela manhã. Eu passava a linha pelo furinho do eixo da pequena lançadeira e ia dando voltas. Cada vez que a linha passava pelo bico apertado da navete fazia o barulhinho de um pequeno clique. De clique em clique eu enchia cada uma delas e só então poderia ir brincar.

No ano passado, através do Centro Cultural do Sertão, entidade sediada em Poço das Trincheiras e criada para preservação e resgate da cultura sertaneja, promovemos um encontro das mulheres "frivoliteiras". Apesar de conseguirmos reunir várias delas, fizemos uma triste constatação: o frivolitê do sertão alagoano está prestes a desaparecer. As antigas artesãs não tiveram sucessoras. As novas gerações não se interessaram por esta arte rara. De todas as que se fizeram presentes apenas uma, Dona Nazarene, ainda morava na cidade.

Há pouco mais de um mês atrás, dias antes da minha viagem de férias, recebi um telefonema avisando que Dona Nazarene estava hospitalizada. Ela tentara suicídio ateando fogo ao próprio corpo e encontrava-se internada na Unidade de Queimados do Hospital Geral do Estado de Alagoas. Tio Tobias me ligou e pediu que fosse visitá-la em seu nome, pois o mesmo convalescia de uma cirurgia recente e não podia se deslocar. Numa tarde de domingo eu fui até o hospital e o que eu vi gostaria de não comentar e preferia até esquecer. Por conta desses acontecimentos, soube que a pobre senhora andava nervosa, o que afetava o seu relacionamento com as outras pessoas. Além do mais, a mesma vivia aperreada com um filho usuário de drogas. Encontrar justificativa para uma tragédia dessa natureza é demais para mim, mas o fato é que, desesperada da vida, resolveu por fim à sua agonia. Passei mal durante a visita e voltei para casa bastante perturbado. Sua situação era tão delicada que uma enfermeira disse para mim que a equipe apenas esperava um milagre.

De volta a casa, procurei não conversar sobre o acontecido tentando direcionar meus pensamentos para outros temas mais amenos. Algumas horas depois minha filha caçula chegou do shopping center onde fora encontrar-se com alguns colegas. Começamos a conversar e ela então falou que tivera um problema ao tentar sacar dinheiro numa máquina de auto-atendimento do banco. No estado de espírito em que eu me encontrava só veio a minha mente pensamentos ruins. Assim era demais, além da sobrecarga de trabalho, dos preparativos para a viagem, das notícias ruins que chegavam ainda mais essa? Mas, apesar de tudo que se passava nos meus pensamentos, eu tinha que ouvi-la. Continuando, ela contou que, ao realizar o saque, a máquina liberou uma quantia maior do que aquela que havia sido solicitada e que achava que deveria devolver ao banco o valor excedente. Com minúcias contou o que havia ocorrido e que já havia conferido a movimentação da sua conta, constatando que só havia sido contabilizado o saque do valor solicitado à máquina, inferior ao de fato entregue. Nesse momento minha mente ficou leve e meu coração se encheu de orgulho pela postura ética da minha filha. Decidimos que eu iria à agência bancária devolver o dinheiro, coisa que fiz na primeira oportunidade, uns dois dias depois. Imaginem minha emoção quando a funcionária do banco começou a elogiar minha filha e dizendo que sua atitude era digna de louvor.

Dias depois dos acontecimentos que acabei de contar, viajamos e, durante o tempo em que estivemos no Velho Continente, aproveitamos cada minuto para absorver toda a história e cultura que encontramos disponível tanto nas galerias e museus quanto nos diversos modelos de urbanização das cidades europeias. Imaginem minha alegria quando, visitando o Palácio de Versalhes, numa das suas lojas de souvenires, encontrei uma pequena almofada decorada com frivolitê. Após o nosso regresso, cansados mas felizes, liguei para meu tio e perguntei sobre o que acontecera com Dona Nazarene. Soube então que os problemas da terra não mais lhe preocupavam, pois Nosso Senhor chamou-a para fazer frivolitê em outra dimensão.

Então, é assim caros colegas, contando mais uma história, registrando os acontecimentos do nosso cotidiano, que volto a escrever para vocês. Aproveito a oportunidade para agradecer a Deus não apenas pela bela viagem que realizamos, mas também agradecer por todos os dias em que tivemos que mandar mais de uma vez uma filha forrar a cama ou lavar os pratos. Agradecer por ter que reclamar de um computador que fica ligado até tarde ou pela demora em se levantar para ir para escola. Agradecer por ter que dizer pela milésima vez que o prato deve ser retirado da mesa ou que os pés não devem ser postos na cadeira. Agradecer por ter uma família e sermos uma família, há 25 anos.  Desejo a todos uma ótima semana e prometo, na próxima ocasião, contar as aventuras deste humilde caeté nas terras d'além mar.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra.

(Escrito em 31/07/2011)

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Base e padrão do povoamento de Poço das Trincheiras

Meu bisavô Sebastião Medeiros Wanderley com seus filhos e filhas.
Data provável 1959
Em pé: Pe. Fernando, Ademar, Sebastião, Osman, Tobias, Olivan e José Arimateia
Sentados: Vovó Lindalva, Donatila, Meu Bisavô, Oralda, Orene e Oraide.

Colegas de todas as origens

Onde se cruza a história de uma jovem holandesa e de um simples caeté?

Se vocês estão pensando que este texto é uma repetição de outro escrito, no último dia 02 de maio, estão todos enganados. Esta história aconteceu há quase 200 anos, foi passada de pai para filho durante gerações até que a professora Maria Audite Vanderlei resolveu transcrevê-la.

Audite nasceu lá na beira do Rio Ipanema, no povoado de Poço das Trincheiras. Com cerca de 30 anos de idade ousou, foi para a capital do estado, estudou o curso Normal, formando-se em 1934. Considerando-se que naquela época o ofício da educação era frequentemente exercido por professores leigos, ela é apontada por alguns, como a primeira professora formada, nascida em Santana do Ipanema. Após a formatura, foi lecionar no município de Penedo, localizado no baixo São Francisco, e em seguida exerceu o seu ofício na cidade de São Miguel dos Campos. Finalmente, na década de 40, foi transferida para Santana do Ipanema. Em 1959, quando o Poço se emancipou de Santana, no fervor do entusiasmo emancipacionista, Audite escreveu um trabalho por ela intitulado: "Árvore genealógica da família Vanderlei - Base e padrão do povoamento de Poço das Trincheiras - Alagoas". Esse trabalho, segundo suas próprias palavras, "nada tem de lendário. Bebido na fonte pura da tradição que os nossos avós nos deixaram".

O trabalho de Audite conta a história de um fidalgo holandês que lá nos idos do século XVIII deu uma pisa da gota serena num conterrâneo, também de origem nobre. A confusão foi tão grande que o cabra resolveu fugir do país. Trouxe consigo uma filha chamada Maria, refugiando-se na província de Pernambuco. Instalou-se na Vila do Penedo "onde viveu incógnito até que sentiu que ia morrer. Chamou, então, um amigo e lhe pediu o obséquio de procurar um matuto probo nos costumes, para desposar sua filha única. Só assim poderia morrer tranquilo. Nessa ocasião, abriu a arca de couro e dela tirou o seu título de fidalgo, escrito em letras de ouro, documento que evidenciou a origem de nobreza de sua filha e que, trancado na arca, ocultou, por muito tempo, a identidade de seu possuidor".

" O esposo da jovem fidalga holandesa foi escolhido entre os matutos do sertão alagoano. O seu nome não passou à posteridade porque a esposa fez questão de legar aos filhos, o nome dos seus ascendentes. Orgulho de raça, talvez".

" Não sei quantos filhos teve o casal. O velho Romualdo foi um deles. Quando se tornou rapaz, abandonando a tutela paterna, veio morar no Poço. Aqui viveu cultivando a terra amiga da Serra do Poço para dela tirar o pão de seus filhos".

A história poderia ter transcorrido sem maiores transtornos, mas eis que em 1844, houve uma disputa política em Alagoas que ficou conhecida como a Rebelião dos Lisos e Cabeludos. Apesar da alusão a uma questão capilar, os contendores brigavam mesmo era por dinheiro e poder. Acontece que um dos filhos do velho Romualdo, Antônio Vanderlei, conhecido como Totonho, era partidário de uma das facções. No outro lado da disputa, um dos seus líderes era um padre lá das bandas de Palmeira dos Índios que tinha uma vida, tanto política quanto sexual, muito ativa. Segundo meu amigo Heider Lisboa, ilustre membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, o padre tinha um monte de filhos. A questão eclesiástica, com certeza, não será o foco da nossa narrativa, o problema é que os ânimos se exacerbaram a tal ponto que alguém resolveu matar o padre e aí se fez a desgraça. Os filhos do padre que ficaram conhecidos como Irmãos Morais, resolveram se vingar e partiram em busca dos adversários políticos para um acerto de contas. Na sua lista estava Totonho, lá de Poço das Trincheiras.

Os Irmãos Morais iniciaram uma série de assassinatos, roubos e incêndios, tanto contra seus desafetos quanto contra aqueles que se negavam a colaborar com eles. Quando da sua passagem por Santana do Ipanema a sua fama já era grande. Nesta cidade, mediante ameaças, obtiveram informações sobre a aparência e paradeiro de Totonho. De posse das informações desejadas partiram para o ataque ao povoado do Poço.

Segundo Audite, Romualdo Vanderlei "vinha da serra, montado num burrinho, trazendo para a família uma carga de mantimentos. Quando atravessava o leito do rio Ipanema, ouviu e viu o tiroteio. Procurou retroceder, mas foi tarde. Uma bala certeira recebida pelas costas, fê-lo cair emborcado sobre a cavalgadura. Esta cena cruel e dolorosa foi presenciada pela jovem Honória - filha do ferido. Honória casou aos 14 anos de idade e era mãe da 1ª filha (tia Belinha), quando os Morais praticaram a terrível hecatombe que enlutou a família trincheirense daquele tempo. Graciosa e meiga no lar, Honória soube dar o mais inconfundível exemplo de coragem feminina e de amor filial que os próprios inimigos admiraram. No momento em que avistou o pobre pai caído sobre a montaria, compreendeu tudo. Forte e decidida, recalcando a dor, reprimindo as lágrimas, enfrentou a fúria traiçoeira de 40 homens armados e correu a socorrê-lo. Erguendo-o, carinhosamente, encostou a cabeça branca e agonizante do ferido em seu jovem coração e com ternura edificante, confortou-o na hora extrema. Quando viu que já tinha em seus braços, um cadáver, tomando-o nas costas, arrastou-o até sua residência, a maior e mais antiga do Poço, situada em frente à ponte. Essa casa, cujas ruínas, eu ainda alcancei, foi demolida, havendo, atualmente, no terreno, uma nova e bonita construção. Foi ponto de reunião dos filhos e netos da heroína, nas claras noites de luar. Ao cadáver do velho Romualdo, Honória juntou os dos três irmãos - Cazuza, Ambrósio e Delfino, vítimas também da carnificina dos Morais, velando-os até a hora do sepultamento".

De acordo com um texto do meu primo Zé Melo, quando os Morais obtiveram informações sobre Antônio Vanderlei, souberam que ele usava uma barba grande. Acontece que, coincidentemente, naqueles dias ele havia raspado a barba e só escapou da morte porque os bandidos não o reconheceram. Segundo Zé Melo os cabras até entraram na sua casa, mas lá só encontraram uma menina chamada Landelina, perguntaram pelo paradeiro do dono da casa, ela disse que ele não estava e eles partiram a procurá-lo em outras casas do povoado.

O fim dos Irmãos Morais, todos podem imaginar qual foi, mas essa história é triste e eu prefiro continuar contando a história da descendência da holandesa Maria. Seus netos, filhos de Romualdo, que sobreviveram ao massacre foram: João Maurício, Antônio, "Coelho", Honória, Pastora e Candinha. Dentre os filhos de Pastora, um se chamou Romualdo e veio a se tornar o pai de Audite. Dentre os filhos de Antônio, sua filha Landelina veio a ser a bisavó de Zé Melo e dentre os filhos de João Maurício, sua filha Clarabela veio a ser minha trisavó.

Meus caros amigos, ao longo do tempo em que me dirijo a vocês através das Saudações Caetés, tenho o prazer de escrever as histórias que um dia ouvi das mais diversas origens, mas não posso deixar de reconhecer que contar a história dos meus antepassados me dá um prazer todo especial. Como especial é, ter o prazer de desejar a todos uma ótima semana. Espero que todos possam se lembrar dos seus pais, dos seus avós e todos aqueles que um dia lhes antecederam e espero que percebam que a história que escrevemos hoje será aquela que será contada por aqueles que um dia nos sucederão.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra.

(Escrito em 29/05/2011).

OBS 1: Se Audite estivesse viva, em setembro deste ano de 2011 estaria completando 110 anos de vida.
OBS 2: Estudos recentes apontaram incorreções em alguns dados do trabalho de Audite, apesar disto, nada tira o mérito do seu pioneirismo no estudo da genealogia do Poço das Trincheiras.

Segue abaixo transcrição do trabalho de Audite sendo preservadas tanto a ortografia original, como mantidos os erros de português, eventualmente cometidos.


https://www.dropbox.com/arvore_genealogica da_familia Vanderlei por Audite Vanderlei.pdf


terça-feira, 28 de maio de 2013

Família é Sagrada e é para sempre.

Sagrada Família
Alunos da 1ª e 2ª série – 1969
Em pé à esquerda Profa. Fátima, ao centro Irmã Letícia e à direita Profa. Evangelina

Colegas de todas as escolas

Onde se cruza a história de uma jovem holandesa e de um simples caeté?

A história que vou contar hoje começou na cidade de Roterdã, na Holanda, quando em 1929 nasceu Laetitia Van Fulpen. Dez anos depois, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, este país foi invadido pela Alemanha que impôs um racionamento de alimentos aos cidadãos holandeses, de modo que, durante este período, o café da manhã da família era apenas uma fatia de pão para cada um. A cada dia, seu pai saia para arranjar alguma coisa para comer e, de acordo com o que obtivesse, à noite era servida uma sopa com aquilo que ele conseguira.

Desde menina Laetitia sentiu a vocação para a vida religiosa, de modo que um dia tornou-se freira e foi para o antigo Congo Belga, onde abriu uma escola enquanto outras freiras atuavam junto à população local na área de saúde e assistência aos mais carentes. Em 1960, o Congo Belga conquistou sua independência e ela, juntamente com as outras missionárias, teve que deixar o país. No entanto, algum tempo depois, todas retornaram para dar continuidade aos seus trabalhos. Durante este novo período ocorreu uma guerra civil no país e, em dado momento, foi transmitida uma ordem às tropas posicionadas na região onde ela trabalhava para que fossem mortos todos os mercenários. Como os cabras nunca tinham ouvido a palavra "mercenários", procuraram no seu linguajar corrente algo que se assemelhasse e entenderam que tratava-se dos "missionários". Eu sei que o assunto lembra uma piada, mas não era. Logo eles partiram para a vila onde as freiras estavam, prenderam todas elas e as posicionaram para execução. Neste momento, alguns soldados começaram a questionar a ordem porque tinham filhos que estudavam na escola que as freiras mantinham e outros, cujas esposas tinham ficado doentes, haviam recebido assistência médica da parte delas. O tempo que durou a discussão entre os homens não foi longo, mas foi suficiente para que chegasse a contra-ordem e assim elas escaparam da morte certa. No entanto, foram deportadas e não mais puderam voltar ao país africano.

Enquanto isso, lá na beira do rio Ipanema, no sertão de Alagoas, eu ainda era menino pequeno e só sabia que existia escola porque via minhas irmãs falarem que iam à escola e porque eu as via estudando sob a orientação de minha mãe, que na época usava o auxílio de uma "pequena" palmatória. No início de 1968 meus pais disseram que eu iria para uma escola que começaria a funcionar naquele ano aproveitando duas salas que existiam na igreja da Sagrada Família. Lá, fui estudar a Cartilha com Dona Sebastiana, digo Dona porque naquele tempo menino não chamava professora de tia. Para mim foi um mundo novo que se abriu. Lá eu tinha muitos meninos para brincar e, no quintal da igreja não faltava espaço para correr e touceiras de capim onde brincávamos de esconder. Mas, o que mais me impressionava era a Diretora da escola. Chamava-se Irmã Letícia, vinha da Holanda, um país que eu não sabia onde ficava,  falava com um sotaque bem carregado e era a primeira freira que eu vi na vida. Era branca e seus braços eram cheios de sardas e, na minha visão de criança, parecia uma pessoa enorme. Os trajes que ela usava eu nunca esqueci, a cabeça estava sempre coberta por um véu de tecido, a blusa era normalmente de cor clara de mangas curtas e a saia vinha a até o meio da canela e era de uma cor acinzentada. Uma coisa que me chamou a atenção, era o fato de ela usar o relógio no lado interno do braço, de modo que, para ler as horas, ela sempre tinha que mostrar a palma da mão.

Irmã Letícia chegou a Santana do Ipanema graças ao trabalho do Padre Cirilo. Começou seu projeto de educação no sertão de Alagoas nos fundos da Igreja da Sagrada Família. No ano seguinte, 1969, a escola passou a ocupar o prédio onde funcionara a sede do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) em Santana. Para minha felicidade, o prédio era exatamente em frente à minha casa e aí, era só atravessar a rua e estava na escola.

Pelo fato de ser dirigido por uma freira, o colégio passou a ser conhecido pela população como o "Colégio das Freiras". Apesar dos poucos recursos e instalações modestas, a escola oferecia uma educação de qualidade como nunca se vira antes naquela cidade. Lá estudava o filho do rico e o filho do pobre. Quem podia pagava mais, quem podia menos pagava menos e quem não podia, nada pagava. Quando os recursos financeiros escasseavam a diligente freira ia buscá-los no seu país de origem. Como para alguns alunos faltava até condições de terem uma roupa boa para assistir as aulas, Irmã Letícia trazia roupas da Holanda para eles.

Acho que um dia de vida da Irmã tinha mais de 24 horas, porque além de todos os trabalhos administrativos do cargo de diretoria, ela ainda encontrava tempo para dar as aulas de religião e nos ensinar a cantar, fazendo aqueles movimentos próprios de uma regente de orquestra. Ela também coordenava a nossa participação nos eventos religiosos da cidade e, apesar de ser estrangeira, conduzia pessoalmente os ensaios dos alunos para os eventos comemorativos das nossas datas cívicas, além de encontrar tempo para encadernar nossas provas, prendendo as folhas de papel com um laçinho de fita.

Em 1972 o Instituto Sagrada Família formou a sua primeira turma do antigo Curso Primário e eu tenho muito orgulho de dizer que fui um dos componentes desta turma histórica. Na nossa "formatura" os próprios alunos proferiram discurso, encenaram teatro e, naturalmente, houve a entrega dos "diplomas". Como a escola não oferecia, naquela ocasião, o curso ginasial, todos tiveram que ir para outras escolas, em Santana do Ipanema ou em outras cidades. Eu não sabia, mas aquele foi o dia em que aquelas 20 crianças estiveram juntas pela última vez.

O tempo passou, o colégio cresceu, novas turmas foram criadas, novas salas foram construídas e mais e mais alunos passaram pelas suas bancas. Um dia, acho que eu já estava na universidade, vivendo nas bandas da beira do mar, passeando por minha cidade natal tive vontade de visitar minha primeira escola. Lá chegando, fui recebido com um imenso sorriso e aquele abraço gostoso que a Irmã Letícia sempre teve para todos os seus "filhos". Naquela ocasião tive a honra de visitar todas as instalações do Instituto Sagrada Família, conduzido pela sua ilustre Diretora que encontrou um tempo na sua agenda de mais de 24 horas para me acompanhar.

Quando o Sagrada foi para o prédio do DNOCS só havia quatro salas de aula, uma sala para os professores, outra para a diretoria e uns banheiros simples, com piso de cimento alisado. Quando o visitei pela última vez, encontrei uma escola dotada de muitas outras salas, auditório, laboratórios, biblioteca e uma simpática capelinha que Irmã Letícia me disse, ser o seu lugar favorito.

O tempo passou e um dia o Padre Cirilo morreu. Tempos depois a Irmã Letícia foi transferida para outra cidade e a direção da escola passou para outras mãos. Certo dia o telhado da escola desabou, prenunciando a marcha da história. Campanhas foram feitas para a recuperação do prédio, recursos foram adquiridos, mas o destino do "Colégio das Freiras" já estava traçado. Hoje, no antigo prédio do DNOCS, funciona uma escola da rede municipal.

Há muitos anos o Instituto Sagrada Família deixou de existir como instituição formal de ensino. Acabaram-se os tempos em que as provas eram encadernadas com laçinhos, laços feitos por mãos que afagavam alunos como se fossem filhos, como também se acabaram os tempos em que uma freira andava de bicicleta pelas ruas de Santana do Ipanema. Mas, está muito longe de chegar o tempo em que o Sagrada deixará de existir nos corações e mentes de todos aqueles que passaram pelas suas bancas, afinal de contas, família é sagrada e é para sempre.

Irmã Letícia não trabalhou sozinha em Santana do Ipanema, é importante e justo reconhecer que o trabalho realizado teve a participação importantíssima da Irmã Ana, na área da educação e da Irmã Leoncia, que dirigia um fusca levando saúde às áreas onde nunca havia chegado um médico. Irmã Letícia e Irmã Leoncia encontram-se atualmente recolhidas na Casa Mãe da sua ordem religiosa, na cidade de Asten, na Holanda. Irmã Ana, lamentavelmente teve uma morte trágica na década de 80. A todas as jovens holandesas que um dia, deixando para trás seus lares e suas famílias dedicaram suas vidas para o bem dos menos favorecidos, o meu sincero obrigado.

Caros colegas, tendo em vista mais uma semana que se inicia, quando tiverem diante de si as preocupações e aperreios do dia-a-dia, procurem lembrar-se de uma passagem dos seus tempos de infância. Eu tenho a impressão que todos acharão, nem que seja no fundo do baú, boas lembranças que, com certeza, acalentarão a alma.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra

(Escrito em 02/05/2011)


Relação dos 20 alunos que concluíram a 4ª Série do Ensino Primário - 1972

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