quinta-feira, 19 de julho de 2012

Oxente! Deus salve a rainha


Locomotiva da antiga Ferrovia Paulo Afonso
Delmiro Gouveia - AL

(escrito em 14/09/2009)

Colegas de todos os meios de transporte.

Quando era criança, aluno do curso primário, nas bancas do Instituto Sagrada Família, tendo aula de Ciências, aprendi que ser vivo é todo aquele que nasce, cresce, reproduz e morre. Naquele tempo eu imaginava que esta categoria de seres era composta por bichos, plantas, micróbios e gente. O que eu não conseguia imaginar àquela época é que as manifestações do espírito humano como arte, religiosidade, língua, costumes, etc., também estão sujeitos a esta mesma lei.

A língua do nosso país que oficialmente é o português, não foge, coisa que ninguém conseguiria, a esta lei implacável. O maior exemplo de morte é o primeiro documento escrito neste solo, a carta de Caminha. Caso seu texto original fosse lido hoje em dia por um cidadão comum, jamais seria entendido, porque foi escrito numa língua morta, ou seja, o português do século XV. À medida que a língua recebe influências quer vindas do estrangeiro, da linguagem popular e até mesmo da própria tecnologia renasce e morre num movimento dialético infinito.

Às vezes nós não percebemos, mas uma série de palavras que fazem parte do nosso dia-a-dia tem origem bem diversa daquela praticada na terra de Camões. Um exemplo extremamente interessante e até mesmo engraçado é a influência da língua inglesa no palavreado ligado às ferrovias. Quando se iniciou a construção de ferrovias no Brasil a influência britânica não se limitou à venda de tecnologia. Fruto dessa influência existe palavras que hoje são usadas no país inteiro e fazem parte até da norma culta, enquanto que outras são meros regionalismos, pronunciados com sotaque próprio e com significados bastante sutis.

Toda estrada de ferro tem paradas para embarque e desembarque, mas enquanto nas terras d'além mar uma parada de trem chama-se GARE, aqui é chamada de ESTAÇÃO, do inglês STATION. O conjunto formado por uma locomotiva rebocando uma sequência de vagões sobre os trilhos aqui é chamado de TREM, do termo britânico TRAIN, porém, na terra dos nossos queridos patrícios este mesmo conjunto é chamado de COMBOIO.

A influência do linguajar dos súditos de Sua Majestade foi particularmente sentida nas terras nordestinas, onde essa nacionalidade de construtores permaneceu trabalhando por mais tempo. Um caso já bastante debatido é o nome do estilo musical característico deste pedaço do Brasil. Como as obras das ferrovias duravam meses e passavam por lugares longe das cidades, as direções das obras ocasionalmente organizavam festas para distrair e motivar o pessoal, porém havia festas onde só entravam os funcionários graduados e quando era promovida uma festa em que os trabalhadores braçais podiam entrar, eles anunciavam que o evento era para todos usando o termo FOR ALL, o que era entendido e propagado por aqueles homens como sendo FORRÓ.

No decorrer de uma obra sempre ocorre uma falha, um imprevisto ou coisa do gênero e qual não era a reação dos bretões quando se deparavam com alguma coisa fora daquilo que esperavam senão exclamar um sonoro OH SHIT ! ! ! . Expressão que ouvida e imitada originou o tradicional, marcante e nordestino OXENTE, que para ser autêntico deve ser pronunciado com "O" fechado. Quem pronuncia OXENTE com o "Ó" aberto, com certeza, não é nordestino. É interessante que alguns desavisados, ou mal assessorados, pensam que a palavra seria o equivalente a expressão Oh gente! Ledo engano. Ri bastante, há uns dias atrás ao assistir a reapresentação de uma telenovela, onde um personagem de origem nordestina ao entrar em casa e não encontrar ninguém começou a percorrer seus cômodos gritando para todos os lados: OXENTE... OXENTE... OXENTE. O coitado do autor da novela simplesmente colocou seu personagem para gritar a plenos pulmões: OH MERDA... OH MERDA... OH MERDA.

Do mesmo jeito que algumas palavras do nosso idioma surgiram da introdução ou interpretação de expressões britânicas, outras surgiram pela dificuldade dos engenheiros em expressarem-se na língua da nossa terra natal. A construção de uma ferrovia é repleta de detalhes construtivos e medidas muito precisas. Segundo o Dr. Romel Vanderley, caeté e professor do curso de engenharia da Universidade Estadual de Maringá, a "distância entre as faces internas das cabeças dos dois trilhos de uma via férrea, o termo técnico em português é BITOLA e na língua inglesa o termo técnico é TRACK-GAUGE ou RAIL-GAUGE". Como ninguém iria entender um palavrão destes, o jeito foi os engenheiros usarem o termo técnico local. Preocupado com a precisão das medidas na construção de uma ferrovia no Ceará, certo engenheiro ficava o tempo todo gesticulando e falando para os operários ficarem atentos à BITOLA, pronunciando a vogal "I" com a pronúncia inglesa "AI". No nordeste de homens fortes, segundo Euclides da Cunha, o jeito excêntrico de se expressar e gesticular do súdito de Sua Majestade causava estranheza aos trabalhadores locais, o que levou ao surgimento da expressão BAITOLA, usada inicialmente para referir-se a este técnico e, posteriormente... Essa parte da história vocês conhecem bem.

Colegas, ao mesmo tempo em que desejo a todos uma ótima semana de trabalho, gostaria de homenagear aqui todos os trabalhadores nordestinos, homens e mulheres, jovens e velhos que com sangue, suor e sofrimento trabalharam enfrentando as mais diversas condições para construir este país de norte a sul.

Saúde e paz.

Virgílio Agra.


PS: Vejam aqui a versão dessa história, contada por Geraldo Azevedo, um dos maiores cantores e compositores da música regional nordestina, com a primoroza animação de Renata Martins Pereira Mola.







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