sábado, 22 de setembro de 2012

Tamarindo doce



(foto gentilmente cedida por Tio Tobias Medeiros, data provável 1905)

Clara Bella foi a minha trisavó, avó de minha avó materna.
Filhos: Tio Olavo, Tibúrcio (morreu solteiro), Tio Torquato, João Maurício (Tio Maurício) e meu bisavô Sebastião (Vozinho).
Francisca (Yayá) (filha), Maria Francisca (Mãezinha) (filha), Vovó Bella, Tia Adelaide (nora), Maria Sidona (filha do casal João Maurício e Adelaide) e Vozinha Olávia, esposa de Vozinho.
O menino é Gaspar, meu avô materno, filho de Consórcia (filha que não aparece na foto) e a menina é Dalva (filha do casal João Maurício e Adelaide)

(escrito em 03/02/2010)

Colegas de todos os doces e azedos

Poço das Trincheiras é uma cidade pequenininha na banda alagoana do sertão nordestino. Surgiu na beira do Rio Ipanema, espremida entre o rio e as várias serras que a cercam. É a terra da minha mãe e de metade dos meus antepassados. Durante muitos anos a sua população constituía-se de, praticamente, uma única família.

Quando eu nasci o meu bisavô, Sebastião Medeiros (Vozinho), ainda era vivo, mas confesso que não me lembro dele. Mas lembro-me, perfeitamente, de duas das suas irmãs, tias-bisavós minhas, que chamávamos de Mamãezinha e Madrinha Yayá. Quando íamos ao Poço tínhamos como obrigação ir a casa delas para pedir a benção.

 - “Bença” Mamãezinha? “Bença” Madrinha Yayá?

 - Deus lhe abençoe meu filho.

Após pedir a benção, lembro-me de duas coisas que me atraíam muito, uma delas era uma caixinha de música, daquelas que tinha que dar corda. Eu ouvia repetidamente aquela musiquinha e quando a engrenagem parava de funcionar eu dava corda novamente com muito cuidado para não quebrar a delicada geringonça. A outra coisa que atraia minha atenção era um grande pé de tamarindo que tinha no quintal da casa. Quem já provou uma fruta de tamarindo sabe o quanto é azeda, mas os tamarindos da casa de Mamãezinha fugiam a esta regra. Além da sombra generosa que a árvore proporcionava, os seus frutos eram surpreendentemente doces.

O tamarineiro é uma árvore de origem africana. Ao contrário de outras árvores nativas de regiões áridas, essa espécie tem um porte alto, copa bastante frondosa, tronco bem grosso e além dos frutos, ideais para sucos, sorvetes e licores, proporciona uma ótima sombra. A sombra num lugar como o sertão nordestino é algo tão importante que é comum, vários povoados e cidades terem surgido exatamente nos locais onde havia uma árvore que proporcionasse uma boa sombra. Neste contexto os pés de tamarindo deram grande contribuição às gentes do sertão. A cidade de Floresta, por exemplo, lá no sertão do Pajeú, ficou conhecida como a Cidade dos Tamarindos devido a predominância desta espécie na arborização da cidade. Naquele tempo, o Poço das Trincheiras também não fugia a esta regra, tendo várias dessas árvores plantadas na sua única rua, mas nenhum era igual àquele que havia no quintal da casa de Mamãezinha e de Madrinha Yayá.

Há pouco tempo atrás descobri que minhas tias-bisavós tinham os nomes bem parecidos, Mamãezinha chamava-se Maria Francisca e Madrinha Yayá chamava-se Francisca. Apesar de serem solteironas, puderam exercitar os seus instintos maternos à medida que criaram um sobrinho de nome Gaspar, que veio a ser o meu avô, e também Celeste, filha do cangaceiro Corisco e da cangaceira Dadá.

Por conta do tipo de vida que levavam, os cangaceiros não podiam criar os filhos que geravam. Por isso, quando as crianças nasciam eram encaminhadas a pessoas que pudessem proporcionar a elas um futuro mais promissor. Curiosamente, os bebês eram normalmente acompanhados por um bilhete que, via de regra, citava que as crianças não tinham culpa pelos erros dos seus pais. Quando Celeste nasceu, Corisco escreveu para o meu bisavô pedindo que cuidasse da menina. Vozinho atendeu ao pedido, fez para Celeste às vezes de pai, enquanto suas irmãs fizeram com muito carinho o papel de mães.

Naquele tempo uma das atividades principais do sertão era a criação de gado. O sistema de criação daquele tempo era bem diferente de hoje em dia. As terras normalmente não tinham cercas e os animais vagavam livremente, sem conhecer limites nem fronteiras, buscando sempre um lugar onde o pasto ou a rama estivessem mais frescos sem que houvesse distinção de quem era o dono da terra ou do animal. Periodicamente, os criadores montavam os seus cavalos e, em grupo, embrenhavam-se na caatinga para campear e reunir todo o gado. Se uma rês apresentava uma doença ou bicheira era então medicada e ao encontrar um bezerro, era só observar em que vaca ele mamava para então marcá-lo na orelha identificando o seu respectivo dono. Quando o bicho se tornava adulto, então era ferrado.

A minha família tinha uma grande área de terras situada rio acima, na direção do vizinho estado de Pernambuco, denominada Sítio Belém. Numa dessas operações de lida com o gado meus tios notaram que faltavam algumas reses de Madrinha Yayá. Um acontecimento desses poderia ser fruto dum ataque de onça, cobra ou mesmo uma doença, mas como as carcaças dos animais não foram encontradas a conclusão não poderia ser outra, o gado fora roubado.

Tio Torquato, um dos irmãos do meu bisavô, resolveu investigar o caso e terminou descobrindo que na feira de Águas Belas, município pernambucano vizinho, foi comercializado o couro de uma rês com a marca de Madrinha Yayá. Quem comprou o couro sabia de quem tinha comprado e, seguindo essa pista, meu tio-bisavô terminou descobrindo o ladrão do gado. Tio Torquato era um homem muito disposto, foi atrás do cabra, prendeu-o e o levou amarrado até o povoado de Poço das Trincheiras. Lá chegando amarrou-o num pé de tamarindo que tinha na rua.

A sombra de uma árvore daquela, tão agradável no calor do sertão, sempre foi o foco de reuniões amigáveis, mas naquela circunstância, para aquele sujeito, a sombra daquela árvore era um prenúncio nada alentador. Naquela época, fim do século XIX, no mínimo uma boa surra ele levaria. Mas coisa pior poderia, com certeza, acontecer. O cabra numa situação daquela não estava preocupado se os frutos do tamarindo eram doces ou azedos, porque o gosto que ele sentia na boca, certamente, era bem amargo. Naquele momento a sua sorte estava nas mãos de Deus.

A notícia se espalhou e logo, logo, uma pequena multidão se formou ao redor daquela árvore. Todo mundo queria ver a cara do ladrão de gado e muito se especulava sobre o seu futuro. Madrinha Yayá ouviu o tumulto, botou a cara na porta e vendo a multidão ao redor do pé de tamarindo procurou saber o que se passava. Qual não foi sua surpresa quando soube que ali se encontrava o ladrão das suas reses. Vendo aquela cena, o homem amarrado como se fosse um bicho, humilhado e com uma perspectiva tenebrosa pela frente o coração da minha tia ficou bem apertadinho. Chamou o irmão e pediu que soltasse o homem. Tio Torquato negou na hora e alegou que o ladrão tinha que pagar pelo que fizera. É certo que eles discutiram, mas percebendo que seu irmão não iria atendê-la pelo seu humanismo, Madrinha Yayá falou firme:

 - O gado é meu. Quem perdeu foi eu e eu quero que solte o homem.

Tio Torquato era homem para enfrentar qualquer tipo de homem, mas não tinha forças para enfrentar nem desgostar sua irmã. Não encontrando outra alternativa, a contragosto, soltou o cabra e olhando bem para ele disse:

 - Vá-se embora, mas não roube mais.

E o sujeito entrou de caatinga a dentro nunca mais aparecendo.

Atualmente, no quintal da casa da minha mãe, lá no sertão baiano, na beira do Velho Chico, tem dois pés de tamarindo gerados de sementes que foram trazidas do quintal de uma certa casa do município de Poço das Trincheiras. Certo dia, um visitante, amigo do meu pai, provou daquele fruto e sugeriu que a planta havia sido adubada com açúcar, para poder produzir frutos com aquela qualidade. Certamente, aquela fruteira foi adubada com açúcar, mas não o açúcar de cana, e sim, um açúcar diferente, capaz de abrandar corações e capaz de adoçar até mesmo um azedo tamarindo.

Estando muito feliz por ter recebido em terras caetés a caeté honorária Flávia Vidal e família, espero que todos possam também ter adoçados os azedos e amargos do dia-a-dia de cada um. Até as próximas saudações.

Saúde, luz e paz.

Virgílio Agra.

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