quarta-feira, 18 de março de 2015

Arte de raiz


O autor com Antônio Hilário
Colegas de todas as literaturas
            Eis que à semana passada um velho amigo ligou para dar uma boa notícia lá das bandas da terra em que o Capibaribe se encontra com o Beberibe para formar o mar. Me contou que um rapaz chamado Manoel Constantino foi vitorioso no Primeiro Concurso de Literatura Infantil da CEPE, a Companhia Editora de Pernambuco com o livro "Anjo de Rua". O que levou meu amigo a ligar para dar a informação é o fato de que Manoel Constantino Filho ser natural de Santana do Ipanema, lá no sertão alagoano.
            Lá na Ribeira do Panema, Manoel é conhecido como Manoel Filho, porque Manoel Constantino é o seu pai. Quando ainda residente na nossa cidade natal, Manoel Filho já participava de atividades do Teatro de Amadores Augusto Almeida incentivado por Albertina Agra, minha tia. Ainda adolescente o rapaz foi estudar em Recife. Formado em jornalismo, hoje trabalha na Fundação de Cultura da Cidade do Recife onde é o editor da Agenda Cultural. Foi produtor de elenco da minissérie "A Pedra do Reino", foi ator no filme "Baile Perfumado", dirigiu peças teatrais e publicou vários livros de poesia. Curiosamente o livro premiado estava engavetado há anos e só agora resolveu publicá-lo. Como eu acredito que tudo tem o seu devido tempo, acho que esse foi o momento certo.
            Num país como o nosso, onde cultura e educação só aparecem como prioridade nos discursos políticos, saber do sucesso de alguém conhecido é motivo de alegria para mim, mas saber que o vencedor de um concurso literário é lá das bandas do sertão alagoano me enche de orgulho e muita satisfação. Saber que alguém proveniente da terra em que nasci alcançou o sucesso numa cidade importante como a capital pernambucana é, para mim, a prova de que o talento não é um dom restrito aos nascidos nos grandes centros. Manoel teve e aproveitou as oportunidades, mas tenho certeza que não teve facilidades. Seu sucesso é fruto de muito trabalho, persistência e inteligência.
            Ao lembrar-me do meu amigo de infância, hoje mais pernambucano do que alagoano, resgatei a memória de outro amigo cujos laços se firmaram a menos de dois anos atrás. Estou falando de Antônio Hilário, nascido em 11 de abril de 1930 e que começou a vida sendo carreiro, na época em que nas estradas do sertão as cargas eram transportadas por carro de bois ou tropas de burros. Um dia, numa conversa, Seu Antônio Hilário contou que fez uma viagem para Garanhuns - PE, para buscar uma carga de café em grãos, café em caroço como ele diz. Apesar do percurso ter aproximadamente 140 quilômetros, a viagem durou nove dias para ir e outros nove para voltar. Permaneceu no ofício de carreiro até 1958, quando então passou a se dedicar à agricultura.
            Tendo que trabalhar desde a mais tenra idade, Seu Antônio Hilário não pode estudar, mas é para mim a prova viva do talento humano que aflora nas pessoas, independentemente do grau de instrução, não importando de onde ela veio ou o que ela fez. Certo dia, fui até a sua casa, na zona rural de Santa Brígida – BA, na companhia de um amigo comum, Elias Marcelino. Era apenas uma visita de cortesia, para "jogar conversa fora". Mas conversa de sertanejo é sempre sobre a chuva, a safra, o preço do gado, essas coisas que fazem parte do dia-a-dia das gentes do sertão. A conversa foi rolando até que, em dado momento, ele começou a recitar uma poesia que exaltava o amor do sertanejo à sua terra e somente agora, três anos depois, descobri como que por acaso, o seu autor e o seu texto na íntegra.
            A poesia declamada era “Suspiros de um Sertanejo” de Leandro Gomes de Barros. Nascido em 1865 em Pombal, na Paraíba, além de poeta tem o mérito de ser um dos precursores da produção impressa da poesia popular nordestina na forma de folhetos de cordel. Em 1906 montou uma pequena gráfica onde, além do seu acervo de cerca de 240 poesias, imprimiu uma infinidade de obras de outros autores populares, alguns até já falecidos, mas cujos trabalhos eram difundidos oralmente pelos cantadores nas feiras das cidades do sertão. Graças a ele, também denominado “O Primeiro sem Segundo”, muitas obras da cultura popular nordestina sobreviveram até os dias de hoje. Falecido em 1918 no Recife – PE, sua arte alcançou tal dimensão a ponto de ser elogiado por grandes expoentes da cultura nacional como Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade e Câmara Cascudo. Em sua homenagem, o mesmo é considerado como patrono da cadeira número um da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.
            Após a sua declamação Seu Antônio Hilário nos contemplou com uma pequena narrativa:
            “Meu colega, teve um cidadão que, por isso ou aquilo outro... Muitas vezes um homem faz a coisa obrigado. Foi um sertanejo que matou uma pessoa, e a pessoa era de "condição". Aí pegaram ele, foi pra cadeia, foi rolando, foi parar no Rio de Janeiro e, naquela época, “não existia advogado no Brasil", mas chegou um homem de fora e foi visitar os presos. Chegou lá, entrou na cadeia, ficou visitando e perguntou uma coisa a um: Por que você tá aqui? Por que você veio prá aqui? De onde é você? Até que chegou onde estava este sertanejo, aí foi onde ele disse que era do sertão mas tava desenganado. Ele perguntou:
            - Tem o dinheiro?
            - Tenho não.
            - Qual é a sua profissão?
            - Minha profissão foi roça e uma viola.
            - E o senhor sabe cantar?
            - Se aparecer uma viola eu digo “umas besteira”.
            - “Apois” se aguarde que eu vou arrumar uma viola pra você.
            Ai saiu e arrumou a viola e quando ele chegou, entregou a viola, foi quando ele partiu com essa”.
            Após o termino, parabenizei-o pela sua capacidade de guardar na mente uma poesia durante tantos anos. Ele havia decorado os versos ouvindo-os de poetas cantadores, há muito tempo. Comparando-se a declamação com o texto original, pode-se verificar facilmente que várias partes foram esquecidas, mas, por tratar de um tema tão presente na vida do povo do sertão, aquela poesia tocou o coração daquele homem que, mesmo endurecido pelo trabalho de sol a sol, foi capaz de manter a sensibilidade para reconhecer a beleza e expressar seus sentimentos através de uma arte que muitas vezes passa despercebida da comunidade culta deste grande país.
            A propósito, pesquisando na grande rede encontrei os trabalhos de Leandro Gomes de Barros em alguns sítios e, dentre eles, no Acervo Digital da Fundação Joaquim Nabuco ( www.fundaj.gov.br ), que guarda uma infinidade de obras de cordel, mas não pude deixar de me encantar com o acervo de Raymond Cantel, um pesquisador francês especialista em língua portuguesa e literatura popular brasileira. Ao longo de sua vida o, Dr. Cantel conseguiu reunir o maior acervo de literatura de cordel da Europa e um dos maiores do mundo e todo esse patrimônio está a disposição de qualquer pessoa através da grande rede no sítio da Universidade de Poitiers – França ( http://cordel.edel.univ-poitiers.fr/ ). Parece que, lá pras bandas das terras de além mar, a cultura é tratada de outro modo.
            Meus amigos, aproveito a oportunidade para desejar-lhes uma ótima semana, parabenizar Manoel Filho pela sua conquista e desejar que a todos nunca falte a sensibilidade para apreciar as diversas e pequenas coisas belas que, com certeza, ponteiam a vida de cada um de nós.
            Saúde, luz e paz!
            Virgílio Agra
(Escrito em 25/01/2012 e modificado em 18/03/2015)

            Sobre o jornalista Manoel Constantino Filho e o livro Anjo de Rua, consultem o endereço: http://www.maltanet.com.br/noticias/noticia.php?id=6813 . 
            Para aqueles que quiserem conhecer a declamação de Seu Antônio Hilário, sugiro assistir o vídeo abaixo:

         Para aqueles que quiserem apreciar a beleza dos “Suspiros de um Sertanejo”, sugiro clicar no link abaixo:
( http://cordel.edel.univ-poitiers.fr/items/show/113 )


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