quarta-feira, 24 de julho de 2013

Histórias de guerra e degustações de cerveja


Foto obtida na Casa Mãe – Asten-NL

Colegas de todos os pontos de vista

Se tem uma coisa que eu aprendi ao longo da minha vida é que uma viagem pode proporcionar muito mais do que aquilo que está disponível nas galerias dos museus, nas mesas dos restaurantes e nas paisagens do tipo "cartão postal". Durante minhas férias nas terras d'além mar, na medida das minhas limitações, procurei ficar atento às oportunidades de interagir com seus habitantes, ao mesmo tempo em que procurei observar o cotidiano dos lugares onde passei, retirando desse contato conhecimentos importantes que jamais constarão num catálogo turístico.

Foi numa manhã de quarta-feira, dia de São Pedro, que partimos de Amsterdã para dar a volta por outros países da Europa. Pegamos um trem para Helmond, depois um ônibus até Asten no sul da Holanda, onde fui encontrar uma pessoa que não via há uns 20 anos, a minha querida Irmã Letícia, fundadora e diretora da escola em que cursei o ensino primário. Não vou aqui discorrer sobre a emoção de poder abraçá-la e poder ouvir sua voz novamente, porque emoção é sentimento e isso não tem como ser descrito. Mas eu não poderia deixar de comentar o quanto a nossa chegada foi festejada, não de maneira formal, mas pela maneira afetiva com que nos trataram. Alguém lembrou que naquele dia a Congregação estava completando 50 anos do início das suas atividades no Brasil e isso foi motivo para mais alegria. Ao comentar com Irmã Letícia sobre o tratamento que nos era dispensado ela simplesmente disse:

 - Quando fomos para outros países como missionárias, criamos laços afetivos com as pessoas desses países, de modo que, quando elas vêm até aqui, são como parentes nossos que nos visitam e como todas nós somos irmãs é como se vocês fossem familiares delas também.

A casa onde as freiras vivem é algo totalmente diferente daquilo que eram os antigos conventos. A Casa Mãe, como é chamada, é um conjunto de prédios de três pavimentos, dotado de portaria, refeitório, elevador, lavanderia, capela e todos os equipamentos necessários a garantir uma morada decente aos seus residentes. Além do conjunto de prédios há também uns jardins, um pomar, um pequeno bosque e um cemitério onde, além dos túmulos, tem também um muro onde constam os nomes daquelas que morreram longe da sua pátria. Se alguém pensava que as freirinhas vivem lá apenas a rezar se enganam. Aquelas que ainda têm condições executam alguns trabalhos, colaborando assim com os serviços da casa e quem quiser conversar com elas fique a vontade, pois elas estão ligadas nas notícias do mundo inteiro.

Durante nossa permanência em Asten aproveitamos para dar uma volta na pequena cidade. Nossa primeira parada foi uma igreja consagrada a Nossa Senhora da Apresentação, construída em estilo gótico, com belos vitrais e toda a grandiosidade desse estilo arquitetônico. Convém citar que na Holanda o lado norte é predominantemente protestante enquanto o lado sul é católico. Após uma volta na praça e uma xícara de café, voltamos a caminhar e avistamos um pequeno parque com um monumento que nos chamou a atenção. Constava de uma figura humana deitada sobre uma placa de pedra em cuja borda estavam gravados vários nomes de pessoas e umas datas. Percebi que eram datas de nascimento e morte sendo que estas últimas coincidiam com o período da Segunda Guerra Mundial. Eu sabia que aquela região tinha sido palco de combates na guerra, particularmente durante a famosa Operação Market-Garden, aquela da ponte longe demais. Fotografei o monumento e depois perguntei a Irmã sobre o que ele tratava. Ela me contou que durante a guerra o prefeito da cidade ajudava clandestinamente aqueles que eram perseguidos pelos invasores. Quando os alemães descobriram, arrastaram-no até aquele local, executaram-no e, durante muito tempo, não permitiram que o seu corpo fosse removido para sepultamento. Após a guerra a população de Asten ergueu o monumento homenageando ele e todos os cidadãos da cidade que tombaram vítimas do nazi-facismo.

A Segunda Grande Guerra é um evento muito importante na história do século vinte e eu já havia lido muito sobre ela. Mas, apesar de já ter se passado quase 70 anos, confesso que me perturbou um pouco ver de perto locais que foram cenários dos seus terríveis acontecimentos. Eu sabia que Irmã Letícia tinha vivenciado a guerra, mas naqueles dias em Asten foi a primeira vez, como adulto, que eu tive a oportunidade de conversar com ela sobre este assunto. Ela contou que seu pai tinha uma boa condição financeira, mas a escassez de comida era tanta que sua família passou fome. Próximo a sua casa morava uma mulher que, provavelmente pela falta de comida, estava doente. Seu marido não trazia comida para casa, talvez porque não conseguisse, talvez porque comesse tudo o que porventura conseguia. Solidária com a situação da mulher, sua mãe separava um pouco daquilo que tinham e mandava que Letícia levasse para ela. Temendo que o marido comesse aquilo que era enviado, esperava que o homem saísse de casa e mandava a menina com a orientação de que só voltasse após a mulher comer tudo, dando a desculpa de que era para trazer de volta a vasilha. Seguindo o mesmo pensamento humanístico um dos seus irmãos começou a participar de uma organização clandestina que ajudava judeus e outros perseguidos pelos nazistas. Seu pai sabia das atividades do filho e guardava sigilo para sua própria segurança, até que um dia ele foi preso pelos alemães e levado para um campo de concentração. Após a guerra, a mulher disse que eles foram anjos enviados por Deus para trazê-la de volta à vida, porém seu irmão nunca voltou para casa. A família soube que ele morreu no campo de concentração e foi enterrado numa vala com outras vítimas, seu corpo nunca foi identificado.

Partimos de Asten de manhã em direção à Dusseldorf, Alemanha, onde minha prima Andréia nos esperava. Nossa passagem pela Alemanha seria breve, visto que, no dia seguinte, já tínhamos um vôo marcado com destino a Roma, mas uma visita à cidade de Colônia superou qualquer expectativa, por mais otimista que fosse. Àquela altura eu não poderia imaginar que a Catedral de Colônia seria o mais grandioso monumento que eu iria conhecer em toda aquela viagem.

Do mesmo jeito que os batavos do outro lado da fronteira, os germânicos também têm muitas cicatrizes da história do último século. Colônia foi simplesmente arrasada pelos bombardeios, as pontes sobre o Reno foram destruídas, mas, por incrível que pareça, sua catedral permaneceu praticamente intacta. Uns podem achar que foi milagre, outros dizem que houve negociação entre os contendores para que aquele patrimônio da humanidade fosse poupado. A verdade talvez nunca saibamos, mas, afinal de contas, se o próprio homem levou 600 anos para construí-la, seria triste vê-la desaparecer no tempo de uma explosão. Por via das dúvidas, os padres retiraram todos os seus vitrais, antes de começarem os "papoucos" das bombas. Após a guerra, os danos sofridos foram reparados e os vitrais centenários foram recolocados para deleite de uma família caeté. Eu fiquei besta com o tamanho da igreja, cruzei seu pátio, atravessei a rua, me espremi contra os prédios do outro lado e não consegui enquadrá-la na câmera fotográfica simples que possuo. No pátio da catedral tem uma réplica em tamanho natural do pináculo das duas torres. De acordo com placas escritas em vários idiomas, eu juro que tinha uma em português, a peça tem 9,5 metros de altura, mas o que eu queria saber de verdade era: Quem foi o cabra que botou aquele troço lá em cima a 157 metros do chão?

O marido de Andréia, Tosten, é um sujeito boa praça que, com muito bom humor, costuma dizer que segue a recomendação da medicina de tomar no mínimo 2 litros de água todos os dias, com a ressalva que a água que ele toma tem 5% de álcool. Fiel à tradição cervejeira do seu país, Tosten nos falou sobre a ritualística que envolve a produção e o consumo da bebida nacional. Segundo ele, cada tipo de cerveja envolve um modelo específico de copo, modo de servir próprio e mais um monte de outros detalhes. De todos estes o mais interessante foi a forma de brindar. Enquanto pelo mundo a fora as pessoas brindam tocando as bordas superiores dos copos, na região de Colônia a tradição manda que o brinde se faça tocando os fundos dos copos. Justificando tal hábito ele dizia sorrindo:

 - Mulher e cerveja se tocam por baixo.

E foi entre um brinde e outro que as horas foram passando até eu cair na cama como uma pedra, no dia seguinte iria se iniciar uma nova etapa da viagem.

Caros colegas, espero que as cervejas do final de semana não atrapalhem a segunda-feira de vocês e, sem medo de ser redundante, desejo que todos tenham uma semana não apenas produtiva, mas principalmente de paz.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra

(Escrito em 28/08/2011)

PS: Dentre as músicas que embalaram nossa viagem, mais uma que merece ser lembrada é “Vamos fugir” com a Banda Skank.


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