domingo, 30 de junho de 2013

Frivolitê, a arte dos nós.


Colegas de todas as artes

Apesar de se passar algumas semanas em que não mando notícias minhas, gostaria de informar a todos que ainda estou vivo e gozando de boa saúde. Abstive-me de escrever por um tempo por conta de uma pequena sobrecarga de trabalho e de umas subsequentes e merecidas férias, usufruídas nas terras d'além mar do velho continente.

Aproveitando a oportunidade, gostaria de perguntar a todos, quem de vocês sabe o que é frivolitê. Antes que alguns pensem que estou aqui tratando de coisas frívolas, portanto fúteis, sosseguem, frivolitê é uma espécie de renda. Menos conhecida que a renda de bilros, este é um trabalho executado com uma espécie de lançadeira chamada navete e tem origem europeia, provavelmente da França ou Bélgica. Esta arte rara foi, durante muito tempo, praticada pelas mulheres da pequena Poço das Trincheiras, lá no sertão alagoano.

Desde criança vi minha mãe, tias e avó praticando esta arte e ficava admirado com os movimentos hábeis que realizavam. Uma das mãos da artesã ficava numa posição como se ela fosse pegar com os dedos uma fruta de tamanho pequeno, como um limão por exemplo. Uma linha era então passada pelo dorso das pontas dos dedos ficando estendida, formando, digamos assim, uma figura circular. Com a outra mão a navete era manobrada em torno da linha estendida, hora passando por cima e voltando por baixo, hora passando por baixo e voltando por cima, formando pequenos nós, até que finalmente ia surgindo pequenos anéis. De anéis em anéis ia surgindo um conjunto que gradativamente se transformava em peças grandes. Cheguei a ver colchas de cama de casal feitas por elas. Era um trabalho demorado e exigia da artesã não apenas muita habilidade, mas principalmente muita paciência.

Segundo ouvi contar pelos mais antigos, essa arte teria chegado lá nas bandas do Poço das Trincheiras, trazida pelas jovens das famílias mais abastadas que foram estudar em colégios internos. Isso lá pelo início do século XX.

Minha avó Lindalva, contou que quando era mocinha foi estudar num colégio interno, mantido por uma ordem religiosa, na cidade de Palmares, zona da mata meridional do vizinho Pernambuco. Apesar da viagem demorar vários dias, incluindo vários trechos a cavalo, esse tempo foi, segundo ela própria, os melhores anos de sua mocidade. Convém ressaltar que minha avó nunca me falou que aprendera a fazer frivolitê no colégio, sua história apenas confirma a existência desse mecanismo de busca das famílias por educação para seus filhos e filhas. Quando ela foi para Palmares, outras jovens já haviam feito caminho semelhante.

Eu, naturalmente, nunca aprendi fazer frivolitê, afinal de contas esse trabalho era específico para as mulheres, mas na casa dos meus pais nós fomos criados ajudando, de uma forma ou de outra, nos trabalhos domésticos. Minhas irmãs ajudavam minha mãe nas tarefas da casa e eu, num tempo que não havia telefone, fazia o trabalho externo como ir buscar o leite na casa de Dona Iracema, dar recados na casa de vovó ou ir fazer compras no armazém de Seu Zé Acioly ou na padaria de Seu Raimundo. Do frivolitê só sobrava para eu encher as navetes. Às vezes mamãe me dava quatro ou cinco navetes para encher e eu sabia que teria algumas horas a menos de folga naquela manhã. Eu passava a linha pelo furinho do eixo da pequena lançadeira e ia dando voltas. Cada vez que a linha passava pelo bico apertado da navete fazia o barulhinho de um pequeno clique. De clique em clique eu enchia cada uma delas e só então poderia ir brincar.

No ano passado, através do Centro Cultural do Sertão, entidade sediada em Poço das Trincheiras e criada para preservação e resgate da cultura sertaneja, promovemos um encontro das mulheres "frivoliteiras". Apesar de conseguirmos reunir várias delas, fizemos uma triste constatação: o frivolitê do sertão alagoano está prestes a desaparecer. As antigas artesãs não tiveram sucessoras. As novas gerações não se interessaram por esta arte rara. De todas as que se fizeram presentes apenas uma, Dona Nazarene, ainda morava na cidade.

Há pouco mais de um mês atrás, dias antes da minha viagem de férias, recebi um telefonema avisando que Dona Nazarene estava hospitalizada. Ela tentara suicídio ateando fogo ao próprio corpo e encontrava-se internada na Unidade de Queimados do Hospital Geral do Estado de Alagoas. Tio Tobias me ligou e pediu que fosse visitá-la em seu nome, pois o mesmo convalescia de uma cirurgia recente e não podia se deslocar. Numa tarde de domingo eu fui até o hospital e o que eu vi gostaria de não comentar e preferia até esquecer. Por conta desses acontecimentos, soube que a pobre senhora andava nervosa, o que afetava o seu relacionamento com as outras pessoas. Além do mais, a mesma vivia aperreada com um filho usuário de drogas. Encontrar justificativa para uma tragédia dessa natureza é demais para mim, mas o fato é que, desesperada da vida, resolveu por fim à sua agonia. Passei mal durante a visita e voltei para casa bastante perturbado. Sua situação era tão delicada que uma enfermeira disse para mim que a equipe apenas esperava um milagre.

De volta a casa, procurei não conversar sobre o acontecido tentando direcionar meus pensamentos para outros temas mais amenos. Algumas horas depois minha filha caçula chegou do shopping center onde fora encontrar-se com alguns colegas. Começamos a conversar e ela então falou que tivera um problema ao tentar sacar dinheiro numa máquina de auto-atendimento do banco. No estado de espírito em que eu me encontrava só veio a minha mente pensamentos ruins. Assim era demais, além da sobrecarga de trabalho, dos preparativos para a viagem, das notícias ruins que chegavam ainda mais essa? Mas, apesar de tudo que se passava nos meus pensamentos, eu tinha que ouvi-la. Continuando, ela contou que, ao realizar o saque, a máquina liberou uma quantia maior do que aquela que havia sido solicitada e que achava que deveria devolver ao banco o valor excedente. Com minúcias contou o que havia ocorrido e que já havia conferido a movimentação da sua conta, constatando que só havia sido contabilizado o saque do valor solicitado à máquina, inferior ao de fato entregue. Nesse momento minha mente ficou leve e meu coração se encheu de orgulho pela postura ética da minha filha. Decidimos que eu iria à agência bancária devolver o dinheiro, coisa que fiz na primeira oportunidade, uns dois dias depois. Imaginem minha emoção quando a funcionária do banco começou a elogiar minha filha e dizendo que sua atitude era digna de louvor.

Dias depois dos acontecimentos que acabei de contar, viajamos e, durante o tempo em que estivemos no Velho Continente, aproveitamos cada minuto para absorver toda a história e cultura que encontramos disponível tanto nas galerias e museus quanto nos diversos modelos de urbanização das cidades europeias. Imaginem minha alegria quando, visitando o Palácio de Versalhes, numa das suas lojas de souvenires, encontrei uma pequena almofada decorada com frivolitê. Após o nosso regresso, cansados mas felizes, liguei para meu tio e perguntei sobre o que acontecera com Dona Nazarene. Soube então que os problemas da terra não mais lhe preocupavam, pois Nosso Senhor chamou-a para fazer frivolitê em outra dimensão.

Então, é assim caros colegas, contando mais uma história, registrando os acontecimentos do nosso cotidiano, que volto a escrever para vocês. Aproveito a oportunidade para agradecer a Deus não apenas pela bela viagem que realizamos, mas também agradecer por todos os dias em que tivemos que mandar mais de uma vez uma filha forrar a cama ou lavar os pratos. Agradecer por ter que reclamar de um computador que fica ligado até tarde ou pela demora em se levantar para ir para escola. Agradecer por ter que dizer pela milésima vez que o prato deve ser retirado da mesa ou que os pés não devem ser postos na cadeira. Agradecer por ter uma família e sermos uma família, há 25 anos.  Desejo a todos uma ótima semana e prometo, na próxima ocasião, contar as aventuras deste humilde caeté nas terras d'além mar.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra.

(Escrito em 31/07/2011)

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