quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Roupa branca e consulta


Imagem obtida no sítio da Nação Nordestina

Colegas de todos os títulos

No último final de semana, aproveitando o feriadão de 15 de novembro, resolvi fazer uma visita à minha cidade natal, Santana do Ipanema, lá no sertão das terras caetés. Visitei tias, tios, vários amigos, ouvi muitas histórias e fiz um monte de perguntas. De modo que, além da viagem da beira do mar ao sertão não pude deixar de fazer uma gostosa viagem no tempo, ouvindo como era a vida daquela cidade na primeira metade do século passado. Além de conversar com velhos conhecidos, parentes ou não, conheci uma senhora muito simples chamada Marinita.

Dona Marinita nasceu na zona rural de Santana e trabalhou durante muitos anos como cozinheira na casa de Aderval Wanderley Tenório, um dos advogados mais brilhantes que tive oportunidade de conhecer na minha vida. Quando Aderval partiu para outra dimensão levou consigo, além da vivência na advocacia, um currículo que incluía três mandatos de deputado estadual e uma carreira de Procurador de Justiça, além de ter exercido o cargo de Secretário de Estado. Por conta de tamanha notoriedade o homem era tratado, tanto nos meios profissionais como também na sociedade, como Doutor Aderval. Por questões de laços familiares, éramos primos, eu detinha a prerrogativa de tratá-lo apenas pelo seu nome de batismo. Como exceção às duas formas de tratamento anteriores só existiam duas outras categorias, seus filhos, que o chamavam de papai, lógico, e Dona Marinita, que só o chamava de "Seu Adervá".

Não pretendo aqui entrar na discussão sobre a adequação, ou não, do tratamento de doutor. Mas, como nesse país é generalizado o uso deste título, até por quem não o detém, chama nossa atenção observar que uma pessoa integrante de uma camada humilde da população seja capaz de desafiar uma convenção social firmemente estabelecida. Quando perguntei para ela porque não se referia a ele como doutor a resposta foi dada na ponta da língua sem titubear.

 - "Seu Adervá num pode ser chamado de dotô, porque ele num veste branco nem passa consulta."

Gostei da firmeza da resposta como também admirei a sua linha de raciocínio. Então, resolvi provocá-la e contra-argumentei que ele era um advogado. Desta maneira, não seria então adequado tratá-lo com o título de doutor? Dona Marinita riu para mim e disse com a sua simplicidade:

 - "Oxente, mas se fosse assim o mundo tava amundiçado de dotô."

Dentre os termos do falar nordestino alguns já são amplamente conhecidos como as expressões oxente, arretado, fuleragem e outros mais. O termo "mundiça", apesar de ser bastante utilizado no nosso linguajar, é pouco conhecido fora da região. Normalmente é usado para designar pessoa ou grupo de pessoas de pouca educação. Ou seja, um cabra "amundiçado" é, nada mais nada menos do que, um sujeito de maus-modos. Da mesma maneira, o termo também pode ser utilizado para qualificar uma família ou grupo de pessoas cujos modos não sejam compatíveis com os padrões de comportamento socialmente aceitos. Por outro lado, "mundiça" também é utilizado para designar uma turba ou um grupo numeroso de indivíduos. Por exemplo, quando alguém quer se referir a uma família numerosa de maneira depreciativa ou jocosa, refere-se a ela como uma "mundiça". Um grande amigo meu, pai de seis filhos, disse-me certa vez que: "quem tem até dois filhos tem uma família, mais do isso é "mundiça". Em seguida, caía na risada.

Quando Dona Marinita disse que o mundo ficaria "amundiçado de dotô", referia-se na verdade à grande quantidade de advogados existentes no mundo e que, seguindo tal raciocínio, todos eles passariam então a ser detentores deste honroso título.

Ao mesmo tempo em que desejo a todos uma douta sabedoria para enfrentar os desafios de mais uma semana, presto aqui, de coração, minha homenagem à sabedoria popular com a qual temos tanto o que aprender.

Saúde, luz e paz.

Virgílio Agra
(escrito em 23/11/2010)

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