sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O fogueteiro e o andor de Senhora Santana


Altar da Igreja Matriz de Senhora Santana - 1964

Colegas de todas as orientações religiosas,

Aconteceu nos tempos em que eu era menino, usando calças curtas e cabelo raspado na máquina zero, sobrando apenas um tufo de cabelo no cocuruto. Era dia da padroeira de Santana do Ipanema, e as ruas da cidade estavam tomadas por uma multidão acompanhando a procissão. Nos tempos em que não havia trio elétrico, nem paradas de orgulho de qualquer coisa, eram a fé do povo, o carisma do Padre Cirilo e o andor ornamentado por Dona Glacira que atraíam gente de toda a região daquele sertão alagoano. Era muita gente e, como eu era pequeno, tenho certeza de que tinha alguém segurando minha mão. A bem da verdade, não me lembro de quem era a mão, mas sou capaz de apostar de olho fechado que era a mão de mamãe, porque, zelosa como era e ainda hoje é, não acredito que ela delegaria esse encargo para “Seu Ninguém”. Eu me lembro bem das pessoas acotovelando-se para chegar perto da santa, algumas tentando apenas tocar no seu andor, enquanto outras faziam questão de carregá-lo, revezando-se continuamente no cumprimento de tamanha honraria. Apesar da aglomeração e do aparente caos, havia um preceito coletivo que garantia o direito de cada um carregar a imagem de Senhora Santana durante um trecho do seu longo cortejo.

Papai nunca gostou muito de multidão e, por uma questão de prudência, preferia acompanhar a procissão guardando certa distância daquela aglomeração em torno da santa. Hoje, depois de tantos anos, eu acho que faria a mesma coisa, mas, naquele dia, minha vontade era exatamente o oposto. Eu queria acompanhar a procissão ao lado da santa, admirando a charola e vendo o revezamento frenético dos homens que a carregavam. Quando eu disse o que queria, minha mãe deu a resposta mais previsível do mundo:

- Não.

Mas aquele dia de julho de um ano qualquer da década de 60 foi diferente de tantos outros. Eu estava determinado a fazer o que queria e passei a insistir. Não sei se por ficar incomodado com a minha insistência, ou por achar que aquela oportunidade poderia ser um bom treino para minha vida futura, papai decidiu que eu poderia sozinho acompanhar a procissão. Sabendo que ela terminaria na praça em frente à Igreja Matriz, antes que me deixasse partir falou:

- Vá e quando a procissão terminar, a gente espera você em frente ao Ferrageiro.

Referia-se à sua loja que ficava exatamente em frente à igreja, do outro lado da praça. Acatei sua ordem e rapidinho me embrenhei na multidão, subindo e descendo as ladeiras da cidade. Apesar de aquela decisão não ter tido a concordância do lado materno dessa história, acho que papai sabia que eu já conhecia o traçado de todas as ruas do bairro, como também que aquela situação seria importante não apenas como uma experiência para mim, como também para eles.

Naquele tempo, um elemento que não podia faltar nas procissões era o fogueteiro. Esse profissional ia acompanhando a procissão e, de tempos em tempos, soltava um foguete, cujo estouro servia para avisar a população tanto do início como da aproximação do cortejo. Apesar de eu já entender essa dinâmica, confesso que nunca tinha visto alguém soltar um foguete. Após percorrer uma rua ou duas de olho fixo no andor, minha atenção foi atraída pelos “papoucos” dos foguetes. Comecei a prestar atenção nas suas trajetórias até que consegui chegar perto do fogueteiro. Conversando com meu velho amigo do tempo da escola primária, Luiz Euclides, ele, além de lembrar-se do homem, lembrava também do seu nome:

- Era Seu Zuza, um senhor de cor clara, cabelos agastados, grande e gordo.

Na verdade ninguém chegava perto demais, Seu Zuza e o ajudante garantiam uma verdadeira clareira naquela floresta humana. Vi vários foguetes subindo chiando em direção ao céu, vi um deles explodir antes de ganhar altura e vi os “cotocos” de dedos na mão de Seu Zuza, observações suficientes para satisfazerem a minha curiosidade e despertarem a minha prudência.

Acho que aquele dia foi importante para um bocado de gente. Foi importante para o povo do sertão que, por devoção ou fé, reverenciava a santa padroeira. Foi importante para papai que colocou pela primeira vez à prova aquilo que viria a ser a minha independência. Foi importante para mim que pude corresponder à sua expectativa e foi importante para minha mãe que naquele dia acompanhou a procissão rezando com mais fervor. Após tantos anos, isso pode parecer para alguns apenas uma história besta de menino, mas, na verdade, aquela situação foi para a história da minha vida uma dentre tantas lições que aprendi com meu pai, a quem agradeço não apenas pelas suas lições, mas também pelo seu exemplo.

No último mês de agosto, papai completou 78 anos. Desejei dar uma passadinha no sertão para lhe dar um abraço, mas minhas férias tinham acabado e eu já havia retornado ao meu trabalho. Queria estar junto dele, relembrar velhas histórias e, quem sabe, ouvir novas, que pudessem um dia ser recontadas, transmitindo memórias, lições e registrando para a posteridade os diversos personagens que compõem a história do sertão, mas lembro-me que, diante de uma ocasião semelhante, ele foi taxativo:

- Primeiro vem a obrigação, depois a devoção.

É por conta de lições como essas, que tenho que me contentar em compensar a distância que nos separa escrevendo meus causos, lembrando o tempo em que eu andava pelas ruas segurando nas mãos de papai e mamãe. Tanto eu, como eles gostaríamos de estar mais próximos uns dos outros, mas sabemos que mais importante do que o tempo que passamos juntos é aquilo que vivemos quando estamos juntos.

Meus colegas, mais uma vez gostaria de desejar a todos uma boa semana e, ao mesmo tempo em que homenageio meu pai pelos seus 78 anos, peço as orações de todos em prol da minha mãe, que hoje estará se submetendo a uma cirurgia delicada.

Saúde, luz e paz!

Virgílio Agra

(Escrito em 17/10/2011)

Além da sua significância para a religiosidade Católica, as procissões tanto recebem influência da cultura popular, como também a influenciam. Um bom exemplo disso é a música Procissão, composta por Gilberto Gil e aqui interpretada pelo grande Luiz Gonzaga.


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