Altar da Igreja Matriz de Senhora Santana - 1964
Colegas de todas as orientações religiosas,
Aconteceu nos tempos em que eu era menino, usando
calças curtas e cabelo raspado na máquina zero, sobrando apenas um tufo de
cabelo no cocuruto. Era dia da padroeira de Santana do Ipanema, e as ruas da
cidade estavam tomadas por uma multidão acompanhando a procissão. Nos tempos em
que não havia trio elétrico, nem paradas de orgulho de qualquer coisa, eram a
fé do povo, o carisma do Padre Cirilo e o andor ornamentado por Dona Glacira
que atraíam gente de toda a região daquele sertão alagoano. Era muita gente e,
como eu era pequeno, tenho certeza de que tinha alguém segurando minha mão. A
bem da verdade, não me lembro de quem era a mão, mas sou capaz de apostar de
olho fechado que era a mão de mamãe, porque, zelosa como era e ainda hoje é, não
acredito que ela delegaria esse encargo para “Seu Ninguém”. Eu me lembro bem
das pessoas acotovelando-se para chegar perto da santa, algumas tentando apenas
tocar no seu andor, enquanto outras faziam questão de carregá-lo, revezando-se
continuamente no cumprimento de tamanha honraria. Apesar da aglomeração e do
aparente caos, havia um preceito coletivo que garantia o direito de cada um
carregar a imagem de Senhora Santana durante um trecho do seu longo cortejo.
Papai nunca gostou muito de multidão e, por uma
questão de prudência, preferia acompanhar a procissão guardando certa distância
daquela aglomeração em torno da santa. Hoje, depois de tantos anos, eu acho que
faria a mesma coisa, mas, naquele dia, minha vontade era exatamente o oposto.
Eu queria acompanhar a procissão ao lado da santa, admirando a charola e vendo
o revezamento frenético dos homens que a carregavam. Quando eu disse o que
queria, minha mãe deu a resposta mais previsível do mundo:
- Não.
Mas aquele dia de julho de um ano qualquer da década
de 60 foi diferente de tantos outros. Eu estava determinado a fazer o que
queria e passei a insistir. Não sei se por ficar incomodado com a minha
insistência, ou por achar que aquela oportunidade poderia ser um bom treino
para minha vida futura, papai decidiu que eu poderia sozinho acompanhar a
procissão. Sabendo que ela terminaria na praça em frente à Igreja Matriz, antes
que me deixasse partir falou:
- Vá e quando a procissão terminar, a gente espera
você em frente ao Ferrageiro.
Referia-se à sua loja que ficava exatamente em
frente à igreja, do outro lado da praça. Acatei sua ordem e rapidinho me
embrenhei na multidão, subindo e descendo as ladeiras da cidade. Apesar de aquela
decisão não ter tido a concordância do lado materno dessa história, acho que
papai sabia que eu já conhecia o traçado de todas as ruas do bairro, como
também que aquela situação seria importante não apenas como uma experiência
para mim, como também para eles.
Naquele tempo, um elemento que não podia faltar nas
procissões era o fogueteiro. Esse profissional ia acompanhando a procissão e,
de tempos em tempos, soltava um foguete, cujo estouro servia para avisar a
população tanto do início como da aproximação do cortejo. Apesar de eu já
entender essa dinâmica, confesso que nunca tinha visto alguém soltar um
foguete. Após percorrer uma rua ou duas de olho fixo no andor, minha atenção
foi atraída pelos “papoucos” dos foguetes. Comecei a prestar atenção nas suas
trajetórias até que consegui chegar perto do fogueteiro. Conversando com meu
velho amigo do tempo da escola primária, Luiz Euclides, ele, além de lembrar-se
do homem, lembrava também do seu nome:
- Era Seu Zuza, um senhor de cor clara, cabelos
agastados, grande e gordo.
Na verdade ninguém chegava perto demais, Seu Zuza e
o ajudante garantiam uma verdadeira clareira naquela floresta humana. Vi vários
foguetes subindo chiando em direção ao céu, vi um deles explodir antes de
ganhar altura e vi os “cotocos” de dedos na mão de Seu Zuza, observações
suficientes para satisfazerem a minha curiosidade e despertarem a minha
prudência.
Acho que aquele dia foi importante para um bocado de
gente. Foi importante para o povo do sertão que, por devoção ou fé,
reverenciava a santa padroeira. Foi importante para papai que colocou pela
primeira vez à prova aquilo que viria a ser a minha independência. Foi
importante para mim que pude corresponder à sua expectativa e foi importante
para minha mãe que naquele dia acompanhou a procissão rezando com mais fervor.
Após tantos anos, isso pode parecer para alguns apenas uma história besta de
menino, mas, na verdade, aquela situação foi para a história da minha vida uma
dentre tantas lições que aprendi com meu pai, a quem agradeço não apenas pelas
suas lições, mas também pelo seu exemplo.
No último mês de agosto, papai completou 78 anos.
Desejei dar uma passadinha no sertão para lhe dar um abraço, mas minhas férias
tinham acabado e eu já havia retornado ao meu trabalho. Queria estar junto
dele, relembrar velhas histórias e, quem sabe, ouvir novas, que pudessem um dia
ser recontadas, transmitindo memórias, lições e registrando para a posteridade os
diversos personagens que compõem a história do sertão, mas lembro-me que,
diante de uma ocasião semelhante, ele foi taxativo:
- Primeiro vem a obrigação, depois a devoção.
É por conta de lições como essas, que tenho que me
contentar em compensar a distância que nos separa escrevendo meus causos,
lembrando o tempo em que eu andava pelas ruas segurando nas mãos de papai e
mamãe. Tanto eu, como eles gostaríamos de estar mais próximos uns dos outros,
mas sabemos que mais importante do que o tempo que passamos juntos é aquilo que
vivemos quando estamos juntos.
Meus colegas, mais uma vez gostaria de desejar a
todos uma boa semana e, ao mesmo tempo em que homenageio meu pai pelos seus 78
anos, peço as orações de todos em prol da minha mãe, que hoje estará se submetendo
a uma cirurgia delicada.
Saúde, luz e paz!
Virgílio Agra
(Escrito em 17/10/2011)
Além da sua significância para a religiosidade Católica, as procissões tanto recebem influência da cultura popular, como também a influenciam. Um bom exemplo disso é a música Procissão, composta por Gilberto Gil e aqui interpretada pelo grande Luiz Gonzaga.
Além da sua significância para a religiosidade Católica, as procissões tanto recebem influência da cultura popular, como também a influenciam. Um bom exemplo disso é a música Procissão, composta por Gilberto Gil e aqui interpretada pelo grande Luiz Gonzaga.
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