terça-feira, 30 de julho de 2013

E os meus caminhos me levaram a Roma


Na Basílica de São Pedro

Colegas de todos os caminhos

Será que todos os caminhos levam a Roma? Não sei se "todos", mas o meu percurso no velho continente passou por lá.

Chegamos a Roma numa manhã de muito sol prenunciando qual seria o clima da nossa estada na terra dos Césares. Pegamos um ônibus no aeroporto de Ciampino até a estação Termini, no centro da cidade, de onde fomos caminhando até a nossa pousada, localizada estrategicamente para facilitar nossos deslocamentos.

Após nos alojarmos demos uma volta na vizinhança onde descobrimos uma pizzaria simples, porém muito acolhedora, de propriedade de um egípcio chamado Mohamed. Após recarregarmos as baterias, de posse de um mapa e dicas dadas pelo pessoal da pousada, fomos "bater perna" pelas ruas de Roma. Caminhar pelas ruas de uma cidade tão antiga já é em si um grande atrativo turístico, mas nós não poderíamos deixar de aproveitar a oportunidade para visitarmos algumas igrejas que, com certeza, teriam muito a enriquecer o passeio. O problema é que, por conta do calor, minha esposa e uma das filhas resolveram usar shorts e camiseta, trajes pouco adequados à visita a um templo. Elas só não ficaram do lado de fora porque os padres, cansados dos problemas que a limitação ao acesso provocava, passaram a disponibilizar peças de tecido que os visitantes usavam para cobrir pernas e ombros. Resolvido o problema, após uma tarde de muita caminhada, fotos, comentários e todo o ritual próprio de quem descobre um novo mundo, pegamos um metrô e fomos visitar a mais famosa fonte de Roma.

Aqui no Brasil nos acostumamos a não confiar na água fornecida pelas empresas de abastecimento nacionais, um costume por demais interessante para as empresas que comercializam as águas minerais. Na Europa, pelo contrário, a água da torneira é sempre de boa qualidade e comprar água engarrafada pode satisfazer um hábito tupiniquim, mas não é nada racional. Ao longo de toda a viagem nunca nos separamos das nossas garrafinhas que eram regularmente abastecidas nas fontes, pousadas e mesmos nas torneiras dos bares, lanchonetes e restaurantes onde nos alimentamos. Naturalmente, algumas fontes não têm água adequada ao consumo, mas a potabilidade da água, ou não, encontra-se normalmente sinalizada. A Fontana di Trevi é um desses exemplos de fonte cuja água, atualmente, não deve ser consumida. No passado, no entanto, era lá onde jorrava água de boa qualidade trazida por um aqueduto romano desde antes da era cristã. No século XVIII foi construído um monumento para decorar a fonte que transformou o local num dos pontos mais charmosos da cidade. O local é simplesmente lindo, mas a "mundiça" de gente é tão grande que termina por prejudicar a beleza do local. Para completar, espalharam o boato que aquele que fica de costas para a fonte, faz um pedido e joga uma moeda na água por sobre a cabeça tem o sonho realizado. O resultado é que em redor da fonte fica um monte de gente besta jogando moeda na água como se esse gesto fosse resolver os problemas do mundo.

No dia seguinte pegamos um metrô próximo da pousada e fomos caminhar nas ruínas do Palatino, Fórum Romano e Coliseu. Tentar descrever tudo que foi visto ou apreendido na visita àquele parque arqueológico geraria um texto tão longo que se tornaria enfadonho, mas teve umas coisinhas que eu não sabia e que me chamaram a atenção. Enquanto os templos e grandes monumentos eram construídos de pedra, conforme consta nas fotos dos livros de história, pude observar que as residências eram construídas em alvenaria. As paredes eram construídas como se fosse um sanduíche, sendo a parte externa construída de tijolo e o miolo era preenchido com uma argamassa misturada com pedras ou pedaços de tijolos, a exemplo de como é, nos dias de hoje, uma argamassa de concreto. Ao atingir a altura desejada, as paredes eram unidas por arcos podendo a parte de cima ser também preenchida com aquela argamassa, formando uma laje que poderia servir de base para a construção de um novo andar. O fato é que pude observar que esta técnica permitia a construção de edificações muito altas, o que equivaleria, com a tecnologia de hoje, a prédios de vários andares.

O nosso último dia em Roma foi escolhido para nossa visita ao Vaticano. Acreditávamos que, por ser uma segunda-feira, haveria menos gente nas filas para a entrada do museu... ledo engano. Pegamos o metrô bem cedo e quando chegamos ao local a fila já estava dobrando a esquina, mas, apesar de longa, caminhou relativamente rápida. Na compra dos ingressos fiquei surpreso quando o atendente, literalmente, jogou os bilhetes sobre o balcão. Vocês sabem aquele jeito que jogador de baralho faz quando joga sobre a mesa aquela cartada que encerra a partida? Só faltou o cara gritar:

 - BATI.

Paguei a quantia e peguei os ingressos meio desconfiado. Pensando, o que teria acontecido para o rapaz proceder daquela maneira? Felizmente, após observar melhor outras pessoas e outros lugares, percebi ser um jeito italiano sem nenhuma maldade, apenas diferente daquilo ao qual eu estou acostumado.

Já tinha ouvido falar que no Vaticano tinha muito ouro, metais e pedras preciosas. Confesso que não foi exatamente isso o que vi. Pude apreciar muitas obras de arte que, pelas suas qualidades, são de valor inestimável, mas na sua grande maioria eram pinturas nas paredes e tetos, retratando passagens bíblicas, elaboradas por grandes mestres das artes. Mas uma característica do museu fez com que eu me sentisse no carnaval de Salvador. A quantidade de gente era tão grande que se o cabra levantasse o pé do chão, iria até o final da galeria num pé só.

Ao sairmos do museu demos a volta no quarteirão que compõe o Vaticano e fomos à Basílica de São Pedro. Como em outras igrejas de interesse histórico e artístico, havia peças de tecidos para cobrir as pernas e ombros desnudos dos desavisados, só que dessa vez a minha turma estava prevenida. O curioso é que, apesar da limitação à exposição do corpo em carne e osso, quando se tratava de nudez em mármore a tolerância era bem maior, eis que a basílica era decorada com várias esculturas com figuras femininas com os seios nus. Falando em escultura, além da Peitá, de Michelângelo, obra maravilhosa que dispensa comentários, havia uma estátua de São Pedro em condições bastante interessantes. Produzida em mármore no século XIII, ao longo do tempo peregrinos beijaram e afagaram tanto os pés do santo que terminaram desgastando os dedos do coitadinho. Resultado, São Pedro tá lá, sentadinho, só com os cotocos de pés, sem um dedo sequer.

Roma é, sem dúvida nenhuma, uma cidade única. Com sua história milenar, proporciona aos seus visitantes tanto o contato com o que existe de melhor na história, na arte e na cultura, como também com problemas tão frequentes nas grandes cidades. Diferentemente das terras batavas, plana e cheia de bicicletas, a Cidade Eterna é situada em terreno ondulado. Este fator, aliado a uma população de quase três vezes a de Amsterdã, influencia fortemente no trânsito da cidade onde chama a atenção a grande quantidade de motonetas e mini carros. Enquanto na Holanda os ônibus passam nos pontos em horários precisos a realidade romana não foge àquilo que temos no transporte público deste grande país. Os ônibus atrasam, vêm lotados e têm um sistema de tarifação que acredito, propicia uma severa evasão de receita. Foi lá onde mais caminhamos e foi de lá que partimos num trem excelente a mais de 230 quilômetros por hora. Não sei se todos os caminhos levam a Roma, mas achei bom que os meus passaram por lá.

Caros colegas, ao mesmo tempo em que desejo a vocês uma boa semana, espero que o criador ilumine o caminho de todos.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra

(Escrito em 20/09/2011)


PS: Comparando a cultura e o desenvolvimento que encontramos no Velho Continente com a realidade deste grande país, mas também verificando a transitoriedade dos antigos impérios que um dia foram dominante e em outro foram destruídos, segue aqui a música “Inútil”, de Roger Moreira, com a Banda Ultraje a Rigor.


quarta-feira, 24 de julho de 2013

Histórias de guerra e degustações de cerveja


Foto obtida na Casa Mãe – Asten-NL

Colegas de todos os pontos de vista

Se tem uma coisa que eu aprendi ao longo da minha vida é que uma viagem pode proporcionar muito mais do que aquilo que está disponível nas galerias dos museus, nas mesas dos restaurantes e nas paisagens do tipo "cartão postal". Durante minhas férias nas terras d'além mar, na medida das minhas limitações, procurei ficar atento às oportunidades de interagir com seus habitantes, ao mesmo tempo em que procurei observar o cotidiano dos lugares onde passei, retirando desse contato conhecimentos importantes que jamais constarão num catálogo turístico.

Foi numa manhã de quarta-feira, dia de São Pedro, que partimos de Amsterdã para dar a volta por outros países da Europa. Pegamos um trem para Helmond, depois um ônibus até Asten no sul da Holanda, onde fui encontrar uma pessoa que não via há uns 20 anos, a minha querida Irmã Letícia, fundadora e diretora da escola em que cursei o ensino primário. Não vou aqui discorrer sobre a emoção de poder abraçá-la e poder ouvir sua voz novamente, porque emoção é sentimento e isso não tem como ser descrito. Mas eu não poderia deixar de comentar o quanto a nossa chegada foi festejada, não de maneira formal, mas pela maneira afetiva com que nos trataram. Alguém lembrou que naquele dia a Congregação estava completando 50 anos do início das suas atividades no Brasil e isso foi motivo para mais alegria. Ao comentar com Irmã Letícia sobre o tratamento que nos era dispensado ela simplesmente disse:

 - Quando fomos para outros países como missionárias, criamos laços afetivos com as pessoas desses países, de modo que, quando elas vêm até aqui, são como parentes nossos que nos visitam e como todas nós somos irmãs é como se vocês fossem familiares delas também.

A casa onde as freiras vivem é algo totalmente diferente daquilo que eram os antigos conventos. A Casa Mãe, como é chamada, é um conjunto de prédios de três pavimentos, dotado de portaria, refeitório, elevador, lavanderia, capela e todos os equipamentos necessários a garantir uma morada decente aos seus residentes. Além do conjunto de prédios há também uns jardins, um pomar, um pequeno bosque e um cemitério onde, além dos túmulos, tem também um muro onde constam os nomes daquelas que morreram longe da sua pátria. Se alguém pensava que as freirinhas vivem lá apenas a rezar se enganam. Aquelas que ainda têm condições executam alguns trabalhos, colaborando assim com os serviços da casa e quem quiser conversar com elas fique a vontade, pois elas estão ligadas nas notícias do mundo inteiro.

Durante nossa permanência em Asten aproveitamos para dar uma volta na pequena cidade. Nossa primeira parada foi uma igreja consagrada a Nossa Senhora da Apresentação, construída em estilo gótico, com belos vitrais e toda a grandiosidade desse estilo arquitetônico. Convém citar que na Holanda o lado norte é predominantemente protestante enquanto o lado sul é católico. Após uma volta na praça e uma xícara de café, voltamos a caminhar e avistamos um pequeno parque com um monumento que nos chamou a atenção. Constava de uma figura humana deitada sobre uma placa de pedra em cuja borda estavam gravados vários nomes de pessoas e umas datas. Percebi que eram datas de nascimento e morte sendo que estas últimas coincidiam com o período da Segunda Guerra Mundial. Eu sabia que aquela região tinha sido palco de combates na guerra, particularmente durante a famosa Operação Market-Garden, aquela da ponte longe demais. Fotografei o monumento e depois perguntei a Irmã sobre o que ele tratava. Ela me contou que durante a guerra o prefeito da cidade ajudava clandestinamente aqueles que eram perseguidos pelos invasores. Quando os alemães descobriram, arrastaram-no até aquele local, executaram-no e, durante muito tempo, não permitiram que o seu corpo fosse removido para sepultamento. Após a guerra a população de Asten ergueu o monumento homenageando ele e todos os cidadãos da cidade que tombaram vítimas do nazi-facismo.

A Segunda Grande Guerra é um evento muito importante na história do século vinte e eu já havia lido muito sobre ela. Mas, apesar de já ter se passado quase 70 anos, confesso que me perturbou um pouco ver de perto locais que foram cenários dos seus terríveis acontecimentos. Eu sabia que Irmã Letícia tinha vivenciado a guerra, mas naqueles dias em Asten foi a primeira vez, como adulto, que eu tive a oportunidade de conversar com ela sobre este assunto. Ela contou que seu pai tinha uma boa condição financeira, mas a escassez de comida era tanta que sua família passou fome. Próximo a sua casa morava uma mulher que, provavelmente pela falta de comida, estava doente. Seu marido não trazia comida para casa, talvez porque não conseguisse, talvez porque comesse tudo o que porventura conseguia. Solidária com a situação da mulher, sua mãe separava um pouco daquilo que tinham e mandava que Letícia levasse para ela. Temendo que o marido comesse aquilo que era enviado, esperava que o homem saísse de casa e mandava a menina com a orientação de que só voltasse após a mulher comer tudo, dando a desculpa de que era para trazer de volta a vasilha. Seguindo o mesmo pensamento humanístico um dos seus irmãos começou a participar de uma organização clandestina que ajudava judeus e outros perseguidos pelos nazistas. Seu pai sabia das atividades do filho e guardava sigilo para sua própria segurança, até que um dia ele foi preso pelos alemães e levado para um campo de concentração. Após a guerra, a mulher disse que eles foram anjos enviados por Deus para trazê-la de volta à vida, porém seu irmão nunca voltou para casa. A família soube que ele morreu no campo de concentração e foi enterrado numa vala com outras vítimas, seu corpo nunca foi identificado.

Partimos de Asten de manhã em direção à Dusseldorf, Alemanha, onde minha prima Andréia nos esperava. Nossa passagem pela Alemanha seria breve, visto que, no dia seguinte, já tínhamos um vôo marcado com destino a Roma, mas uma visita à cidade de Colônia superou qualquer expectativa, por mais otimista que fosse. Àquela altura eu não poderia imaginar que a Catedral de Colônia seria o mais grandioso monumento que eu iria conhecer em toda aquela viagem.

Do mesmo jeito que os batavos do outro lado da fronteira, os germânicos também têm muitas cicatrizes da história do último século. Colônia foi simplesmente arrasada pelos bombardeios, as pontes sobre o Reno foram destruídas, mas, por incrível que pareça, sua catedral permaneceu praticamente intacta. Uns podem achar que foi milagre, outros dizem que houve negociação entre os contendores para que aquele patrimônio da humanidade fosse poupado. A verdade talvez nunca saibamos, mas, afinal de contas, se o próprio homem levou 600 anos para construí-la, seria triste vê-la desaparecer no tempo de uma explosão. Por via das dúvidas, os padres retiraram todos os seus vitrais, antes de começarem os "papoucos" das bombas. Após a guerra, os danos sofridos foram reparados e os vitrais centenários foram recolocados para deleite de uma família caeté. Eu fiquei besta com o tamanho da igreja, cruzei seu pátio, atravessei a rua, me espremi contra os prédios do outro lado e não consegui enquadrá-la na câmera fotográfica simples que possuo. No pátio da catedral tem uma réplica em tamanho natural do pináculo das duas torres. De acordo com placas escritas em vários idiomas, eu juro que tinha uma em português, a peça tem 9,5 metros de altura, mas o que eu queria saber de verdade era: Quem foi o cabra que botou aquele troço lá em cima a 157 metros do chão?

O marido de Andréia, Tosten, é um sujeito boa praça que, com muito bom humor, costuma dizer que segue a recomendação da medicina de tomar no mínimo 2 litros de água todos os dias, com a ressalva que a água que ele toma tem 5% de álcool. Fiel à tradição cervejeira do seu país, Tosten nos falou sobre a ritualística que envolve a produção e o consumo da bebida nacional. Segundo ele, cada tipo de cerveja envolve um modelo específico de copo, modo de servir próprio e mais um monte de outros detalhes. De todos estes o mais interessante foi a forma de brindar. Enquanto pelo mundo a fora as pessoas brindam tocando as bordas superiores dos copos, na região de Colônia a tradição manda que o brinde se faça tocando os fundos dos copos. Justificando tal hábito ele dizia sorrindo:

 - Mulher e cerveja se tocam por baixo.

E foi entre um brinde e outro que as horas foram passando até eu cair na cama como uma pedra, no dia seguinte iria se iniciar uma nova etapa da viagem.

Caros colegas, espero que as cervejas do final de semana não atrapalhem a segunda-feira de vocês e, sem medo de ser redundante, desejo que todos tenham uma semana não apenas produtiva, mas principalmente de paz.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra

(Escrito em 28/08/2011)

PS: Dentre as músicas que embalaram nossa viagem, mais uma que merece ser lembrada é “Vamos fugir” com a Banda Skank.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Nu é grátis, semi-nua não.


Colegas de todas as línguas

Se você está lendo este texto pode até pensar que é alfabetizado, mas tenha cuidado, pois tudo é relativo.

Durante minhas férias pude realizar um velho sonho, conhecer a Europa. Após uma viagem de doze horas, incluindo uma conexão em Lisboa, eu, minha esposa e minha filha caçula chegamos a Amsterdã. A lentidão no desembarque do avião e a demora na restituição de bagagem foi para mim uma coisa normal, nada que eu não houvera vivenciado em outros aeroportos. Uma vez conferida toda bagagem dirigimo-nos à estação ferroviária que é integrada ao aeroporto. No percurso seguíamos as indicações das placas já que todas elas tinham a tradução para o inglês, mas quando chegamos à estação ferroviária todos os meus conceitos caíram por terra. Também não era para menos, afinal de contas, para todo lado que eu me virava, só via placas escritas em holandês, cheias de consoantes, e eu não fazia a menor idéia do que aquelas palavras significavam. Naquele momento eu me senti como um imigrante nordestino que chegava a São Paulo nos meados do século passado, um verdadeiro analfabeto. Uma vez percebendo que não iríamos entender mesmo aquela escrita, passamos a olhar em redor, até que finalmente identificamos uma bilheteria e aí os pensamentos começaram a entrar em ordem. Deixei as meninas com as bagagens fui até o guichê e, dirigindo-me à atendente, declamei uma frase pré-ensaiada:

 - Good morning. Please, three tickets to this station - e deslizei sobre o balcão um papelzinho com a palavra: HEEMSTEDE - AERDENHOUT.

Eu dou um euro que sobrou da viagem para o cabra que conseguir pronunciar o nome dessa estação. A Holanda é um país lindo e com organização exemplar, mas a língua é impronunciável.

De posse das passagens, procuramos a plataforma de embarque e, após alguns minutos decifrando o quadro de horário dos trens, conseguimos embarcar sabendo que teríamos que fazer uma baldeação na estação de SLOTERDIJK, esta é fácil, pronuncia-se "sloterdaik". Finalmente, chegamos à estação de destino onde tínhamos que pegar um ônibus até o local da nossa hospedagem. Embarcamos no ônibus da Linha 80 e, dirigindo-me ao motorista, recitei aquela famosa frase:

 - Good morning.
Please, three tickets to this bus stop - e mostrei um papelzinho com a palavra: SHOUWTJESBRUG. (A oferta do euro que sobrou continua de pé).

Quem já passou pela experiência de chacoalhar nos ônibus urbanos aqui no Brasil não vai acreditar, pois eis que, no país dos moinhos de vento, em cada parada há um quadro constando os horários em que os ônibus passam pontualmente e, dentro dos veículos, tem um painel onde aparece o nome e horário da parada seguinte bem como das próximas três. Finalmente chegamos ao Bed & Breakfast: My Dream. A proprietária, Leonice, uma brasileira casada com Hennes, um alemão criado na Holanda, hospeda profissionalmente turistas do mundo inteiro, mas o tratamento que nos dispensou fez-nos sentir como se estivéssemos na casa de um parente muito querido.

Quem lê sobre a Holanda sabe que o país tem um histórico de tolerância com questões ligadas a sexo e drogas, mas fiquei admirado quando li num cartaz instalado no ponto de ônibus em frente da casa da Léo o anúncio: "Nu gratis". Eu concordo com a parte da tolerância, mas nudez gratuita pareceu-me um pouco exagerado. Para minha tranquilidade, Léo me explicou que se tratava de uma oferta comercial e que a palavra NU significava, em português, "agora".

Na tarde daquela sexta-feira e no dia seguinte, com o apoio de Leonice e de um casal amigo, Alaíde e Peter, conhecemos Haarlem, cidade onde estávamos hospedados, bem como outros municípios das suas redondezas. Foi num desses passeios que encontramos e pudemos visitar um moinho de vento em plena operação, destinado a produção de farinha de trigo. Do ponto de vista turístico a visita ao moinho foi encantadora, mas do meu ponto de vista como engenheiro e aficionado pelo estudo da história foi simplesmente fantástico. Entrar naquele moinho e percorrer o seu interior, ver as suas engrenagens, sua estrutura, os materiais de que ele é feito, seus mecanismos de manobra e dispositivos de segurança gerou uma quantidade enorme de informações.

No domingo fomos a Amsterdã onde contamos com o apoio de um amigo de minha filha mais velha que, apesar de estar naquela época morando na Holanda, estava, exatamente naqueles dias, em terras portuguesas com certeza. O rapaz, mineiro de nascimento e trabalhador ilegal por ousadia, nos levou ao RIJKSMUSEUM, pelo nome vocês já sabem do que se trata, onde pudemos não apenas conhecer o acervo que retrata a história da idade de ouro dos Países Baixos, como também pudemos nos deliciar com os belíssimos quadros de Rembrandt. Após o almoço, no qual comemos costelas de porco com batata (Bom demais!), fomos caminhar pelas ruas da velha cidade.

Que na Holanda tem mais bicicleta do que gente, isso todo mundo sabe, mas o que chamou a atenção deste caeté foi observar as prioridades dos batavos na hora de tratar os fluxos de tráfego nas suas cidades. Todas as vias são acessíveis às pessoas e bicicletas, sendo que essas últimas têm prioridade sobre os pedestres. Conforme nos aproximávamos do centro da cidade, gradativamente, fomos observando que o acesso de carros de passeio ia ficando cada vez mais restrito, até que chegamos num perímetro onde os únicos veículos motorizados eram os ônibus e os bondes que lá são chamados de TRAM. Outra coisa que me chamou a atenção foi ver nas ruas uma grande quantidade de carros de marcas famosas que aqui no Brasil são acessíveis aos muito ricos, mas confesso que achei simplesmente fantástico ver os motoristas conduzindo seus veículos possantes de maneira serena sem o exibicionismo tão frequentemente visto nas ruas das cidades do nosso grande país.

Caminhando pelas ruas de Amsterdã, nosso "guia por um dia", Guilherme, perguntou se poderia nos levar ao Bairro da Luz Vermelha, uma área da cidade onde a prostituição de homens e mulheres é praticada de forma regulamentada pelas leis holandesas. Diante da nossa concordância, entramos no bairro através da BLOEDSTRAAT (Rua de Sangue), local onde no passado houve uma matança de vários travestis. O relógio indicava que já era noite, mas considerando que o país gozava de horário de verão e ainda por cima fica próximo ao círculo polar, o sol ainda estava alto e iluminava muito bem toda a cidade. Talvez por conta da luz do sol nós vimos apenas um prostíbulo em funcionamento. Seguindo o costume do lugar, a casa possuía vitrines onde, em cada uma delas uma bela garota de biquíni ficava à vista dos passantes. Vindo de um país onde os trajes de banho costumam ser minúsculos, devo admitir que as prostitutas usavam biquínis bem comportados, mas uma coisa é certa, lá "nu" pode ser grátis, mas uma semi-nua não.

Por sugestão de Leonice, resolvemos incluir na nossa programação uma visita à Delft, cidade com quase mil anos de existência e bastante conhecida por sua famosa porcelana azul. A cidade tem como maiores atrativos duas grandes igrejas construídas em estilo gótico que, como outras na Holanda, foram convertidas em templos protestantes. Numa delas, a Nieuwe Kerk, por tradição, são enterrados os membros da família real holandesa. Neste templo que abriga o mausoléu a Guilherme de Orange composto, entre outras coisas, por uma estátua do grande herói nacional, pudemos observar os nichos que abrigavam as imagens de santos que foram simplesmente derrubadas e destruídas durante a Reforma Protestante na Idade Média. Outra curiosidade por nós observada foi o fato destes templos terem sido os únicos em toda a viagem em que tivemos que pagar para visitá-los.

Nesses deslocamentos entre as cidades vi algumas coisas que não pude deixar de admirar. As cidades holandesas são ligadas não apenas por ferrovias e rodovias, como também pelas ciclovias. Lá, você pode percorrer o país inteiro de bicicleta sem precisar disputar espaço com os automóveis. Além disso, até as estradas vicinais são asfaltadas. Mas o que eu mais gostava de admirar eram as fazendas holandesas. O terreno era bem plano e as divisões das áreas ao invés de serem feitas com cercas eram feitas com canais, de maneira que a terra ficava toda quadriculada. O verde cobria tudo, emoldurado pelos inúmeros canais e algumas vezes a gente via pequenas áreas de bosques. Mas surpresa eu tive quando passamos numa fazenda e eu vi umas coisas que pareciam uns rolos de papel higiênico gigantes. Eu tomei foi um susto, considerando o zelo que os holandeses têm pelas suas vaquinhas e que no idioma local vaca pronuncia-se "cu", eu pensei logo: aquilo deve servir para deixar as bichinhas bem limpinhas, para não estragar o gosto do leite. Chegando mais perto pude observar que na verdade eram rolos de feno, cobertos com uma lona apropriada de cor branca. A propósito, vaca em holandês escreve-se KOE, mas a pronuncia é daquele jeito, vocês sabem qual.

Escolher a Holanda como nossa porta de entrada para a Europa foi uma decisão acertada. Poder apreciar a riqueza do seu acervo cultural, a beleza das suas edificações, usufruir do seu transporte público, transitar pelas suas ruas e canais, conhecer suas cidades históricas e sua moderna infra-estrutura nos trás uma gama imensa de percepções que palavras são insuficientes para descrever e apenas o contato direto pode proporcionar. Da mesma maneira que os elementos físicos, a educação dos neerlandeses também nos proporcionou experiências interessantes. Durante nossa visita a Amsterdã, paramos na beira de um canal para comer um lanche quando, de repente, se aproximou de nós um homem mal trajado, com a cara de quem tinha tomado uns goles. A bem da verdade, sua aparência não correspondia ao modelo de alguém muito ajustado à sociedade. Se fosse aqui no Brasil qualquer um pensaria que ele iria pedir dinheiro ou iria ficar conversando besteiras, mas não foi o que se sucedeu. O sujeito havia encontrado próximo de onde estávamos um isqueiro velho, largado no chão. O homem pegou o isqueiro e foi perguntando a todas as pessoas que estavam naquele lugar se alguém era dono daquele objeto. Somente após se certificar que este não pertencia a nenhum dos presentes, anunciou então, em voz alta, que iria ficar com ele. Só então, botou o isqueiro no bolso e foi embora.

Pode parecer coincidência, mas desde que era menino, eu sonhava em conhecer a Holanda. Um pouco por conta de um antepassado, mas principalmente por causa da figura da Irmã Letícia, diretora e fundadora da minha primeira escola. Contar os eventos pitorescos dessa visita é apenas o jeito deste simples caeté compartilhar com vocês a maravilhosa experiência que tive oportunidade de usufruir. Aproveitando a oportunidade, gostaria de desejar a todos uma ótima semana e prometo no próximo contato continuar contando as aventuras de um caeté nas terras de além mar.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra

(Escrito em 13/08/2011)

PS: No decorrer da viagem, várias vezes associávamos os lugares que víamos ou as situações que vivenciávamos a algumas músicas do nosso pop rock brasileiro. Uma delas foi a música Ciúme, de Roger Moreira, aqui tocada numa versão acústica pela inesquecível banda Ultraje a Rigor.




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