Seu Arlindo Grande
Povoado Várzea – Paulo Afonso-BA
Foto gentilmente cedida por Luiz
Ruben Bonfim
(escrito em 12/04/2010)
Colegas de todos os fascínios.
Ainda está para nascer no sertão nordestino, um cabra que nunca ouviu uma história sobre Lampião. Ao longo da minha vida, já tive oportunidade de ouvir, e contar, várias delas. Muitas das histórias contadas são, por essência, meramente lendas, outras, no entanto, trazem à mente as imagens do que era a vida naquele tempo.
Há uns anos atrás, juntamente com uns colegas, visitei o povoado de Várzea, no município de Paulo Afonso, lá no sertão baiano. Neste lugarejo fomos à casa de um senhor, conhecido como "Arlindo Grande", que conhecera Lampião quando da sua passagem pela região. Apesar da idade e de uma perda quase que total da visão, as lembranças dos tempos do cangaço eram bem claras na mente do velho sertanejo. Era em torno de três para quatro horas da tarde e o sol já declinava, de modo que a casa projetava sua sombra na calçada onde sentamos para ouvir uma história que se passou quando o velho sertanejo ainda era uma criança. Não fiz anotações ou gravações do relato, mas, se a memória não me trair, o caso foi mais ou menos assim:
Um dia, Seu Arlindo estava com outro garoto junto a um barreiro (espécie de pequeno açude que era escavado no chão para acumular água), e, se não me engano, estavam dando água para uns animais quando viram chegar um bando de homens armados. O outro garoto falou assustado:
- Valei-me Nossa Senhora! É cangaceiro.
Os homens vinham montados em burros e se aproximaram rapidamente sem que os meninos pudessem esboçar qualquer reação. Os homens desceram das montarias e foram lavar os punhais nas águas do barreiro. A quantidade de sangue contida nas armas era tanta que as águas tingiram-se de vermelho. Após a limpeza dos punhais, percebendo que havia umas casas próximas, um dos cangaceiros perguntou:
- Quem é o "Tenente" daqui?
- É meu avô - respondeu Seu Arlindo.
Naquele estágio da história republicana do Brasil, em alguns estados da federação os administradores dos municípios eram chamados de Intendentes e em outros estados eram chamados de Prefeitos. Com o início da era Vargas a nomenclatura foi então uniformizada para o formato que conhecemos hoje. Ao perguntar pelo "Tenente", o homem referia-se na verdade ao Intendente do lugar. A Várzea àquela época era apenas uma fazenda no então município de Santo Antônio da Glória não sendo, portanto sede de uma intendência, mas o uso daquele título referia-se àquele cidadão que, por idade ou posses poderia ser reconhecido como autoridade do lugar.
O cangaceiro então ordenou que o menino montasse na garupa do seu animal e o conduzisse até o "Tenente". Quando o garoto montou no animal, tentou se segurar no cavaleiro e não conseguiu. Naquela época, a mochila como conhecemos hoje, não fazia parte dos apetrechos militares. Os combatentes, polícia ou cangaceiro, usavam bornais, de modo que dois bornais de um lado e outros dois do outro deixavam o indivíduo tão largo que os braços curtos do garoto não conseguiam abraçar a cintura do cangaceiro. Percebendo a dificuldade do menino o homem voltou-se para ele e disse com voz firme:
- Se segura cabra. Que você tá se segurando em Lampião.
Foi aí que Seu Arlindo soube com quem estava falando.
Como a distância entre o barreiro e as casas era pequena, rapidamente o grupo lá chegou. O avô de Seu Arlindo, vendo o grupo aproximar-se, percebeu do que se tratava e, mesmo sendo um homem simples, soube transformar aquele encontro numa grande lição da arte de saber viver. Sabendo das brigas entre polícia e cangaço, o patriarca sabia que o futuro dele e dos seus familiares dependia de como ele iria se conduzir no encontro que estava prestes a acontecer. Quando o grupo chegou ao terreiro da casa Lampião logo perguntou:
- O "sinhô" é o “Tenente” daqui?
- Era eu Capitão.
Seu Arlindo apeou da montaria e Lampião fez o mesmo em seguida. O velho cumprimentou o cangaceiro e o convidou a entrar na casa. Apenas o chefe do bando entrou os demais ficaram do lado de fora. O que conversaram, nunca saberemos, mas após algum tempo, saíram para o alpendre e o visitante perguntou se o anfitrião poderia arranjar uma "criação" para alimentar seus comandados. Imediatamente o avô mandou que trouxessem o melhor carneiro que havia no cercado e o entregou.
Os cangaceiros eram organizados. Eles mesmos mataram o animal, tiraram o couro e retalharam a carne para o preparo. O homem que sangrou o carneiro, talvez tentando se exibir, talvez querendo impressionar os moradores do lugar, lambeu o punhal ensangüentado. Ao ver a cena, o Capitão levantou-se do alpendre, dirigiu-se até o cabra e deu-lhe uma enorme reprimenda.
- Como é que você faz uma coisa dessas na frente de um homem que recebe a gente desse jeito?
Seu Arlindo disse que a descompostura foi tamanha que o cabra correu para dentro do mato para chorar escondido.
Em seguida os cangaceiros pediram um tacho e fritaram a carne de um modo que ele nunca havia visto. Quando a comida estava pronta foi servida de maneira muito organizada e bastante ordeira. Cada cangaceiro tirou de dentro do seu bornal um prato de ágata e uma porção de farinha e o grupo organizou uma fila para que cada um pegasse a sua porção de carne. Após a refeição todos descansaram um pouco até que o Capitão anunciou que iriam partir. Neste momento Lampião dirigiu-se ao patriarca e perguntou quanto custara o carneiro. Imediatamente o sábio sertanejo respondeu:
- "Num custou nada não Capitão. No dia que o sinhô vortá aqui, nóis come outro".
Lampião agradeceu e posicionou-se com seus "meninos" para partir. Neste momento o avô de Seu Arlindo dirigiu-se a ele e fez uma sábia pergunta.
- Capitão! A polícia vai saber que o senhor esteve aqui e vai vir atrás do senhor. Quando perguntarem para onde o senhor foi, o que eu devo responder?
- Diga a eles que nos fomos por aqui - respondeu o Rei do Cangaço, apontando para a direção onde o grupo se dirigia.
Como era previsto, no dia seguinte após a visita dos cangaceiros, a polícia chegou ao povoado, coletou algumas informações e partiu.
Infelizmente, os capítulos seguintes da história não seguiram o mesmo padrão. Lampião passou outras vezes pela Fazenda Várzea sem molestar ninguém, mas as autoridades, incapazes de atingir os cangaceiros diretamente, voltaram sua ira para os moradores do lugar. O pai de Seu Arlindo foi preso acusado de ser coiteiro, sendo conduzido para a delegacia de Santo Antônio da Glória onde sofreu muitos maus-tratos. Talvez por conta disso o pobre homem morreu prematuramente deixando o filho órfão.
Diante do relato, perguntamos a Seu Arlindo Grande se ele não tivera vontade de ingressar no cangaço e ele respondeu que sim, mas não o fez porque sua mãe pediu muito que ele assim não fizesse, pois com a morte do seu pai ela só tinha o filho a quem recorrer. Caso ele entrasse para o cangaço ela iria passar sérias privações sem ter quem cuidasse da fazenda nem dos animais.
Durante a conversa perguntamos sobre sua impressão com relação aos cangaceiros que conhecera e ele demonstrou um grande fascínio para com Virgínio, vulgo Moderno, que era cunhado de Lampião. Lembro-me bem do comentário que ele fez, com seu jeito simples de falar:
- Eu não vou dizer que Virgínio era um homem bonito, que um homem não acha outro bonito, mas ele era um homem de "presença" que quando chegava num lugar todo mundo notava. Eu gostava muito dele.
A conversa se estendeu mais um pouco, até que finalmente chegou a hora de voltarmos para casa. Nunca mais voltei ao Povoado da Várzea, nunca mais encontrei Seu Arlindo Grande e nunca mais esqueci aquela tarde de sol em que sentado à sombra numa calçada ouvi uma história que valeu a pena ser ouvida e também vale a pena ser contada.
Ao contar histórias do tempo do cangaço não tenho pretensão de enaltecer nenhuma das partes envolvidas. Há muito tempo me livrei desse dilema infame. O cangaço teve seu tempo e seu lugar. Tentar entendê-lo à luz da sociedade que temos hoje, só nos proporcionará uma visão distorcida de um fenômeno que precisa antes ser sentido para que então possa ser entendido.
Aproveitando a oportunidade para transmitir toda minha solidariedade aos meus colegas das terras cariocas que na última semana sentiram-se como se sentiu Noé, desejo a todos uma ótima semana, com chuva branda para amenizar o calor e sol brilhante para realçar a cor.
Saúde, luz e paz.
Virgílio Agra.
Ainda está para nascer no sertão nordestino, um cabra que nunca ouviu uma história sobre Lampião. Ao longo da minha vida, já tive oportunidade de ouvir, e contar, várias delas. Muitas das histórias contadas são, por essência, meramente lendas, outras, no entanto, trazem à mente as imagens do que era a vida naquele tempo.
Há uns anos atrás, juntamente com uns colegas, visitei o povoado de Várzea, no município de Paulo Afonso, lá no sertão baiano. Neste lugarejo fomos à casa de um senhor, conhecido como "Arlindo Grande", que conhecera Lampião quando da sua passagem pela região. Apesar da idade e de uma perda quase que total da visão, as lembranças dos tempos do cangaço eram bem claras na mente do velho sertanejo. Era em torno de três para quatro horas da tarde e o sol já declinava, de modo que a casa projetava sua sombra na calçada onde sentamos para ouvir uma história que se passou quando o velho sertanejo ainda era uma criança. Não fiz anotações ou gravações do relato, mas, se a memória não me trair, o caso foi mais ou menos assim:
Um dia, Seu Arlindo estava com outro garoto junto a um barreiro (espécie de pequeno açude que era escavado no chão para acumular água), e, se não me engano, estavam dando água para uns animais quando viram chegar um bando de homens armados. O outro garoto falou assustado:
- Valei-me Nossa Senhora! É cangaceiro.
Os homens vinham montados em burros e se aproximaram rapidamente sem que os meninos pudessem esboçar qualquer reação. Os homens desceram das montarias e foram lavar os punhais nas águas do barreiro. A quantidade de sangue contida nas armas era tanta que as águas tingiram-se de vermelho. Após a limpeza dos punhais, percebendo que havia umas casas próximas, um dos cangaceiros perguntou:
- Quem é o "Tenente" daqui?
- É meu avô - respondeu Seu Arlindo.
Naquele estágio da história republicana do Brasil, em alguns estados da federação os administradores dos municípios eram chamados de Intendentes e em outros estados eram chamados de Prefeitos. Com o início da era Vargas a nomenclatura foi então uniformizada para o formato que conhecemos hoje. Ao perguntar pelo "Tenente", o homem referia-se na verdade ao Intendente do lugar. A Várzea àquela época era apenas uma fazenda no então município de Santo Antônio da Glória não sendo, portanto sede de uma intendência, mas o uso daquele título referia-se àquele cidadão que, por idade ou posses poderia ser reconhecido como autoridade do lugar.
O cangaceiro então ordenou que o menino montasse na garupa do seu animal e o conduzisse até o "Tenente". Quando o garoto montou no animal, tentou se segurar no cavaleiro e não conseguiu. Naquela época, a mochila como conhecemos hoje, não fazia parte dos apetrechos militares. Os combatentes, polícia ou cangaceiro, usavam bornais, de modo que dois bornais de um lado e outros dois do outro deixavam o indivíduo tão largo que os braços curtos do garoto não conseguiam abraçar a cintura do cangaceiro. Percebendo a dificuldade do menino o homem voltou-se para ele e disse com voz firme:
- Se segura cabra. Que você tá se segurando em Lampião.
Foi aí que Seu Arlindo soube com quem estava falando.
Como a distância entre o barreiro e as casas era pequena, rapidamente o grupo lá chegou. O avô de Seu Arlindo, vendo o grupo aproximar-se, percebeu do que se tratava e, mesmo sendo um homem simples, soube transformar aquele encontro numa grande lição da arte de saber viver. Sabendo das brigas entre polícia e cangaço, o patriarca sabia que o futuro dele e dos seus familiares dependia de como ele iria se conduzir no encontro que estava prestes a acontecer. Quando o grupo chegou ao terreiro da casa Lampião logo perguntou:
- O "sinhô" é o “Tenente” daqui?
- Era eu Capitão.
Seu Arlindo apeou da montaria e Lampião fez o mesmo em seguida. O velho cumprimentou o cangaceiro e o convidou a entrar na casa. Apenas o chefe do bando entrou os demais ficaram do lado de fora. O que conversaram, nunca saberemos, mas após algum tempo, saíram para o alpendre e o visitante perguntou se o anfitrião poderia arranjar uma "criação" para alimentar seus comandados. Imediatamente o avô mandou que trouxessem o melhor carneiro que havia no cercado e o entregou.
Os cangaceiros eram organizados. Eles mesmos mataram o animal, tiraram o couro e retalharam a carne para o preparo. O homem que sangrou o carneiro, talvez tentando se exibir, talvez querendo impressionar os moradores do lugar, lambeu o punhal ensangüentado. Ao ver a cena, o Capitão levantou-se do alpendre, dirigiu-se até o cabra e deu-lhe uma enorme reprimenda.
- Como é que você faz uma coisa dessas na frente de um homem que recebe a gente desse jeito?
Seu Arlindo disse que a descompostura foi tamanha que o cabra correu para dentro do mato para chorar escondido.
Em seguida os cangaceiros pediram um tacho e fritaram a carne de um modo que ele nunca havia visto. Quando a comida estava pronta foi servida de maneira muito organizada e bastante ordeira. Cada cangaceiro tirou de dentro do seu bornal um prato de ágata e uma porção de farinha e o grupo organizou uma fila para que cada um pegasse a sua porção de carne. Após a refeição todos descansaram um pouco até que o Capitão anunciou que iriam partir. Neste momento Lampião dirigiu-se ao patriarca e perguntou quanto custara o carneiro. Imediatamente o sábio sertanejo respondeu:
- "Num custou nada não Capitão. No dia que o sinhô vortá aqui, nóis come outro".
Lampião agradeceu e posicionou-se com seus "meninos" para partir. Neste momento o avô de Seu Arlindo dirigiu-se a ele e fez uma sábia pergunta.
- Capitão! A polícia vai saber que o senhor esteve aqui e vai vir atrás do senhor. Quando perguntarem para onde o senhor foi, o que eu devo responder?
- Diga a eles que nos fomos por aqui - respondeu o Rei do Cangaço, apontando para a direção onde o grupo se dirigia.
Como era previsto, no dia seguinte após a visita dos cangaceiros, a polícia chegou ao povoado, coletou algumas informações e partiu.
Infelizmente, os capítulos seguintes da história não seguiram o mesmo padrão. Lampião passou outras vezes pela Fazenda Várzea sem molestar ninguém, mas as autoridades, incapazes de atingir os cangaceiros diretamente, voltaram sua ira para os moradores do lugar. O pai de Seu Arlindo foi preso acusado de ser coiteiro, sendo conduzido para a delegacia de Santo Antônio da Glória onde sofreu muitos maus-tratos. Talvez por conta disso o pobre homem morreu prematuramente deixando o filho órfão.
Diante do relato, perguntamos a Seu Arlindo Grande se ele não tivera vontade de ingressar no cangaço e ele respondeu que sim, mas não o fez porque sua mãe pediu muito que ele assim não fizesse, pois com a morte do seu pai ela só tinha o filho a quem recorrer. Caso ele entrasse para o cangaço ela iria passar sérias privações sem ter quem cuidasse da fazenda nem dos animais.
Durante a conversa perguntamos sobre sua impressão com relação aos cangaceiros que conhecera e ele demonstrou um grande fascínio para com Virgínio, vulgo Moderno, que era cunhado de Lampião. Lembro-me bem do comentário que ele fez, com seu jeito simples de falar:
- Eu não vou dizer que Virgínio era um homem bonito, que um homem não acha outro bonito, mas ele era um homem de "presença" que quando chegava num lugar todo mundo notava. Eu gostava muito dele.
A conversa se estendeu mais um pouco, até que finalmente chegou a hora de voltarmos para casa. Nunca mais voltei ao Povoado da Várzea, nunca mais encontrei Seu Arlindo Grande e nunca mais esqueci aquela tarde de sol em que sentado à sombra numa calçada ouvi uma história que valeu a pena ser ouvida e também vale a pena ser contada.
Ao contar histórias do tempo do cangaço não tenho pretensão de enaltecer nenhuma das partes envolvidas. Há muito tempo me livrei desse dilema infame. O cangaço teve seu tempo e seu lugar. Tentar entendê-lo à luz da sociedade que temos hoje, só nos proporcionará uma visão distorcida de um fenômeno que precisa antes ser sentido para que então possa ser entendido.
Aproveitando a oportunidade para transmitir toda minha solidariedade aos meus colegas das terras cariocas que na última semana sentiram-se como se sentiu Noé, desejo a todos uma ótima semana, com chuva branda para amenizar o calor e sol brilhante para realçar a cor.
Saúde, luz e paz.
Virgílio Agra.
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