domingo, 28 de outubro de 2012

Um martírio de morada

Palácio Floriano Peixoto – Maceió-AL

Colegas de todas as moradias

Que a capital caeté, famosa pela beleza de suas praias, é um bom lugar para se morar isso ninguém questiona. Nos tempos de hoje os endereços mais procurados, e mais caros também, são aqueles próximos à orla marítima e se for, na área da Ponta Verde, aí então é melhor ainda. Mas, apesar dessa preferência pela brisa carregada de maresia, alguns endereços longe do barulho das ondas do mar são bastante disputados.

No centro histórico de Maceió, em frente à Igreja dos Martírios, o Palácio Floriano Peixoto, antiga sede do governo alagoano, sempre foi um endereço bastante desejado e disputado. Entre o palácio e a igreja, uma praça garante um adequado distanciamento entre os dois prédios. De um lado da praça, no sopé da barreira que delimita a parte alta e baixa da cidade, a igreja dos Martírios, construída num plano mais alto, simboliza a casa de Deus, senhor dos céus. Já do outro lado da praça, num plano mais baixo, o palácio Floriano Peixoto, que foi durante muitos anos a morada e local de trabalho dos governadores do estado, é até hoje o maior símbolo do poder na terra dos caetés.

As diferenças entre as duas construções são visíveis e bem marcantes. No lado de baixo da praça encontra-se um prédio muito bem preservado. Já no lado de cima, apesar de suas características arquitetônicas, as manchas nas paredes e a degradação dos azulejos da fachada e torres mostram, inquestionavelmente, o descaso com o patrimônio histórico e cultural. No lado de cima da praça, enquanto o templo simboliza a busca por um reino dos céus, o lado de baixo é a marca do mais terreno dos poderes. Apesar das diferenças reais e simbólicas entre os vizinhos da praça proporcionar uma lista bastante longa, a proximidade entre ambos gerou certa identidade, no mínimo, bastante curiosa.

Apesar do palácio ser o símbolo do domínio sobre todo o estado, coube à igreja, pelo menos na cultura popular, o predomínio sobre toda a praça. Curiosamente, a praça não é conhecida como "Praça do Palácio", mas sim como Praça dos Martírios. Até o Palácio Floriano Peixoto é conhecido popularmente como Palácio dos Martírios, nome que me parece bastante adequado, considerando-se a repercussão de muitos acontecimentos ligados ao exercício do poder local. Há que se admitir que aquela casa foi, muitas vezes o símbolo de um verdadeiro martírio tanto para o povo do estado quanto para os seus ocupantes. Dentre os acontecimentos, e foram vários, que simbolizaram o martírio dos seus ocupantes, vou contar um que é um verdadeiro clássico da política caeté.

Conta-se que, lá pelos idos de 1950 e alguma coisa, Sivestre Péricles de Góis Monteiro era governador das terras caetés. Quando chegou a época da eleição que iria escolher o seu sucessor, a disputa polarizou-se entre o candidato apoiado por Silvestre e o seu arquiinimigo Arnon Afonso de Farias Melo. Como estava em jogo não apenas questões políticas, mas, principalmente, questões pessoais, a campanha foi muito acirrada com duros golpes de lado a lado. Quando chegou o dia da abertura das urnas o resultado sagrou vencedor Arnon de Mello. Inconformado, mas impossibilitado de reverter a situação, Silvestre Péricles decidiu que não entregaria o cargo sem antes infernizar a estada do futuro morador no palácio. Eu não sei se Silvestre gostava de rezar, mas eu acho que, olhando para o outro lado da Praça dos Martírios, apreciando a igreja, o velho político se inspirou na passagem bíblica que diz: "ao barro voltarás". Eu sei que na Bíblia não está escrito barro, está escrito pó, mas pó, cinza, terra e barro são elementos tão próximos um do outro que vamos deixar assim mesmo.

Na noite da véspera da posse, Silvestre executou o seu incomum plano. Do outro lado daquilo que poderíamos chamar de "centro histórico de Maceió", na Cadeia Pública, a morada que ninguém queria ter, chegou uma ordem do próprio governador: O delegado deveria libertar todos os presos que fossem capazes de encher uma lata de merda. Vocês não entenderam? Bastava uma lata cheia de "cocô", de um barro, que o preso deveria ser solto imediatamente. Nesta noite o movimento na Praça da Cadeia foi frenético. No começo eram os policiais saindo às pressas para comprar óleo de rícino, para que os presos pudessem estimular as atividades "defecativas", e a partir de certas horas eram os presos saindo na carreira, enquanto carros levavam as latas de "barro" para serem entregues ao chefe maior.

De madrugada, de posse da sua inusitada encomenda, Silvestre esfregou o "cocôteúdo" das latas em todas as paredes, teto, tapetes, piso, torneiras e maçanetas do Palácio Floriano Peixoto. Em seguida abandonou o prédio que, a esta altura dos acontecimentos, exalava um fedor tão forte que até o Marechal Floriano Peixoto, que ao pó já havia retornado, devia estar se sentido bastante incomodado.

Hoje, o Palácio Floriano Peixoto, devidamente restaurado e principalmente limpo, inserido num quarteirão coberto de belos jardins, é um belo museu na capital caeté. Nos fundos desse quarteirão ajardinado foi construído um prédio bonito, moderno, todo envidraçado, o Palácio República dos Palmares, nova sede do poder terreno no estado.

Mas além de sua crônica política sui generis as terras caetés também tem cultura e folclore. Como por exemplo, o pastoril, folguedo onde duas alas de moças, denominadas pastorinhas, disputam a simpatia do público dançando e cantando músicas que exaltam o nascimento do menino Jesus. Uma ala veste a cor azul e a outra a cor vermelha, coincidentemente as cores da bandeira do estado, e são denominadas de cordão azul e cordão encarnado.

No próximo final de semana, mais uma vez, estará em disputa o governo das terras caetés. Um dos concorrentes, candidato à reeleição, adotou como símbolo a cor azul enquanto o outro, ex-governador com dois mandatos, adotou a cor vermelha. Neste pastoril da política, falta bem pouquinho para sabermos se sairá do cordão azul ou do cordão encarnado o velho morador do novo palácio.

Enquanto isso, do outro lado da praça, morando numa construção imponente, apesar da degradação causada pelo tempo e pelo descaso, Nossa Senhora dos Martírios... Rogai por nós.

Aos meus amigos servidores da justiça eleitoral desejo muito sucesso nas atividades deste 2º turno de eleições, etapa importantíssima para a definição do futuro deste grande país, e a todos um bom final de semana e bom feriadão.

Saúde, luz e paz.

Virgílio Agra
(escrito em 28/10/2012)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Dieta de capim


Santana do Ipanema - 1970
Monumento ao jumento que tanto carregou água no sertão

(escrito em 20/10/2010)

Colegas de todos os hábitos alimentares

O Brasil vive atualmente, em regime de segundo turno, mais um processo de eleição do dirigente máximo do nosso grande país e, em alguns estados da federação, a eleição dos seus respectivos governadores. As eleições mexem com o país inteiro, torna-se a notícia do momento e disputa com o futebol e as notícias de catástrofes o espaço nos noticiários de norte a sul.

Apesar das eleições serem consideradas como o principal marco da democracia dos tempos atuais, há que se admitir que num país onde poucas pessoas dominam os meios de comunicação e de produção, o resultado final de uma eleição dificilmente refletirá a exata vontade de um povo. Se as elites econômicas do país têm a capacidade de influenciar as suas instituições, como duvidar da sua capacidade de manipular a vontade daqueles que votam dando ouvido muito mais ao ronco da barriga do que as "propostas" dos diversos candidatos?

No primeiro turno das eleições 2010, no estado de Alagoas, concorreu ao governo do estado, dentre outros, o Senador Fernando Collor de Mello que, após ter reavido os seus direitos políticos, elegeu-se senador da república em 2008. Lamentavelmente, no decorrer da campanha, um determinado apresentador de programa de televisão, o Senhor Ratinho, afirmou que mandaria para o estado de Alagoas um caminhão de capim, caso o povo caeté o elegesse governador.

Reconheço, naturalmente, o direito que tem o apresentador de expressar sua preferência política, sexual, gastronômica, esportiva, etc. Mas, o exercício do seu direito de expressão não o autoriza a ofender o povo do meu estado. Se o destemperado apresentador fizesse um breve exercício de observação, descobriria que, de norte a sul do país, concorriam às eleições muitos candidatos sem a menor condição cultural nem moral para o exercício de um cargo político. Apesar de que em todos os estados concorressem bons e maus candidatos, em vários deles sagraram-se vencedores candidatos de qualidades duvidosas. Apenas para exemplificar, permitam-me citar os casos dos Deputados Federais eleitos Romário no Rio de Janeiro e o palhaço Tiririca em São Paulo, cuja alfabetização é contestada. Votos de protesto? Será? Se assim fosse? Como se explicaria a eleição, também no estado de São Paulo, o estado mais rico do país, do Sr. Paulo Salim Maluf, velho conhecido da crônica da má política no Brasil?

Se formos listar os maus exemplos de escolha eleitoral, acredito que teríamos uma lista tão grande que este texto se tornaria até enfadonho, tal seria a sua extensão. Se a lista dos exemplos é tão vasta e nela consta maus políticos do país inteiro, por que apenas o estado de Alagoas merece receber tão desaforada oferta? Com certeza, por ser um dos menores e mais pobres estados do país. Talvez o "muito esclarecido" apresentador se encontre neste momento satisfeito pela ousadia do seu comentário maldoso, preconceituoso, arrogante e covarde. Mas, eu torno a perguntar: a quem se deve atribuir responsabilidades por possíveis más escolhas num país onde crianças se prostituem e pedem esmolas nos sinais de trânsito? Com certeza esta responsabilidade não cabe aos pobres, que, fragilizados pela miséria e pela opressão, não têm condições de se defender daqueles que com acenos e um punhado de dinheiro manipula suas consciências e "compra-lhes" os votos.

Sugiro ao dito apresentador que não se aproveite da liberdade de expressão para, usando o seu canal de televisão, vir ofender o sofrido povo do pequeno e esquecido estado de Alagoas. Ao invés disso, empregue sua "coragem", se é que ele a tem, para atacar indivíduos poderosos e, ao invés de enviar aos alagoanos a sua encomenda desaforada, mande para nós uma dose de respeito, elemento muito mais útil para todos os cidadãos deste grande país. Com relação ao seu caminhão de forragem, não o envie para outro estado, porque a vontade democrática de todos deve sempre ser respeitada. Sugiro aqui que ele mesmo o coma, pois, por ser o capim um vegetal rico em fibras, com certeza deverá ajudá-lo a perder um pouco das gorduras que enfeitam sua região abdominal, sinal da sua abastança financeira, não cultural.

Em tempo, por ter ficado em terceiro lugar no primeiro turno das eleições, o Senador Fernando Collor de Mello ficou fora da disputa pelo governo do estado de Alagoas. Naturalmente, o mesmo retornará ao exercício do seu mandato de senador e, nesta condição eu desejo, sinceramente, que trabalhe com dedicação e serenidade para o bem não apenas do meu pequeno estado como também para o bem do meu grande país.

Relutei bastante em escrever sobre esse assunto. Não se trata aqui de um ato de defesa de nenhum candidato, não importa que nome ele tenha. No entanto, quero deixar bastante claro que me posiciono exclusivamente como um cidadão alagoano ofendido com a agressão desferida contra a população do meu estado. Composta por pessoas que, ao cumprir o dever cívico de votar, têm que escolher entre as candidaturas inscritas, submetendo-se a todo tipo de assédio por parte das forças políticas do estado. Realidade encontrada, incontestavelmente, em todos os outros estados da federação.

Ainda no primeiro turno, enquanto a campanha rolava com o tradicional jogo de palavras dos candidatos, em terras caetés, na pequena Santana do Mundaú, cidade duramente atingida pelas enchentes de junho deste ano, a justiça eleitoral se esforçava para garantir aos cidadãos daquela cidade o exercício do sagrado direito de votar. Como as poucas escolas que escaparam da fúria da enchente ainda encontravam-se ocupadas pelos desabrigados, a solução encontrada foi instalar todas as 20 seções eleitorais da cidade em barracas. A Defesa Civil forneceu as barracas, o Exército Brasileiro montou-as e o pessoal da justiça eleitoral dotou-as das instalações mínimas necessárias para o funcionamento das urnas eletrônicas. Mesas, cadeiras e banheiros químicos foram alugados e, finalmente, no último dia 03 de outubro a população de Santana do Mundaú pode participar, em pé de igualdade com qualquer outra cidade, do maior evento da jovem democracia do nosso país.

Aproveitando a oportunidade para sugerir a todos uma dieta bastante equilibrada, desejo a todos os meus amigos uma ótima semana de trabalho.

Saúde, luz e paz

Virgílio Agra.

OBS: Já que estamos falando de capim e de cultura também, segue abaixo uma homenagem do grande Luiz Gonzaga a um irmão nosso e grande comedor de capim, lembrando que 2012 é o ano do centenário deste grande artista.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Na garupa de Lampião

Seu Arlindo Grande
Povoado Várzea – Paulo Afonso-BA
Foto gentilmente cedida por Luiz Ruben Bonfim

(escrito em 12/04/2010)

Colegas de todos os fascínios.

Ainda está para nascer no sertão nordestino, um cabra que nunca ouviu uma história sobre Lampião. Ao longo da minha vida, já tive oportunidade de ouvir, e contar, várias delas. Muitas das histórias contadas são, por essência, meramente lendas, outras, no entanto, trazem à mente as imagens do que era a vida naquele tempo.

Há uns anos atrás, juntamente com uns colegas, visitei o povoado de Várzea, no município de Paulo Afonso, lá no sertão baiano. Neste lugarejo fomos à casa de um senhor, conhecido como "Arlindo Grande", que conhecera Lampião quando da sua passagem pela região. Apesar da idade e de uma perda quase que total da visão, as lembranças dos tempos do cangaço eram bem claras na mente do velho sertanejo. Era em torno de três para quatro horas da tarde e o sol já declinava, de modo que a casa projetava sua sombra na calçada onde sentamos para ouvir uma história que se passou quando o velho sertanejo ainda era uma criança. Não fiz anotações ou gravações do relato, mas, se a memória não me trair, o caso foi mais ou menos assim:

Um dia, Seu Arlindo estava com outro garoto junto a um barreiro (espécie de pequeno açude que era escavado no chão para acumular água), e, se não me engano, estavam dando água para uns animais quando viram chegar um bando de homens armados. O outro garoto falou assustado:

 - Valei-me Nossa Senhora! É cangaceiro.

Os homens vinham montados em burros e se aproximaram rapidamente sem que os meninos pudessem esboçar qualquer reação. Os homens desceram das montarias e foram lavar os punhais nas águas do barreiro. A quantidade de sangue contida nas armas era tanta que as águas tingiram-se de vermelho. Após a limpeza dos punhais, percebendo que havia umas casas próximas, um dos cangaceiros perguntou:

 - Quem é o "Tenente" daqui?

 - É meu avô - respondeu Seu Arlindo.

Naquele estágio da história republicana do Brasil, em alguns estados da federação os administradores dos municípios eram chamados de Intendentes e em outros estados eram chamados de Prefeitos. Com o início da era Vargas a nomenclatura foi então uniformizada para o formato que conhecemos hoje. Ao perguntar pelo "Tenente", o homem referia-se na verdade ao Intendente do lugar. A Várzea àquela época era apenas uma fazenda no então município de Santo Antônio da Glória não sendo, portanto sede de uma intendência, mas o uso daquele título referia-se àquele cidadão que, por idade ou posses poderia ser reconhecido como autoridade do lugar.

O cangaceiro então ordenou que o menino montasse na garupa do seu animal e o conduzisse até o "Tenente". Quando o garoto montou no animal, tentou se segurar no cavaleiro e não conseguiu. Naquela época, a mochila como conhecemos hoje, não fazia parte dos apetrechos militares. Os combatentes, polícia ou cangaceiro, usavam bornais, de modo que dois bornais de um lado e outros dois do outro deixavam o indivíduo tão largo que os braços curtos do garoto não conseguiam abraçar a cintura do cangaceiro. Percebendo a dificuldade do menino o homem voltou-se para ele e disse com voz firme:

 - Se segura cabra. Que você tá se segurando em Lampião.

Foi aí que Seu Arlindo soube com quem estava falando.

Como a distância entre o barreiro e as casas era pequena, rapidamente o grupo lá chegou. O avô de Seu Arlindo, vendo o grupo aproximar-se, percebeu do que se tratava e, mesmo sendo um homem simples, soube transformar aquele encontro numa grande lição da arte de saber viver. Sabendo das brigas entre polícia e cangaço, o patriarca sabia que o futuro dele e dos seus familiares dependia de como ele iria se conduzir no encontro que estava prestes a acontecer. Quando o grupo chegou ao terreiro da casa Lampião logo perguntou:

 - O "sinhô" é o “Tenente” daqui?

 - Era eu Capitão.

Seu Arlindo apeou da montaria e Lampião fez o mesmo em seguida. O velho cumprimentou o cangaceiro e o convidou a entrar na casa. Apenas o chefe do bando entrou os demais ficaram do lado de fora. O que conversaram, nunca saberemos, mas após algum tempo, saíram para o alpendre e o visitante perguntou se o anfitrião poderia arranjar uma "criação" para alimentar seus comandados. Imediatamente o avô mandou que trouxessem o melhor carneiro que havia no cercado e o entregou.

Os cangaceiros eram organizados. Eles mesmos mataram o animal, tiraram o couro e retalharam a carne para o preparo. O homem que sangrou o carneiro, talvez tentando se exibir, talvez querendo impressionar os moradores do lugar, lambeu o punhal ensangüentado. Ao ver a cena, o Capitão levantou-se do alpendre, dirigiu-se até o cabra e deu-lhe uma enorme reprimenda.

 - Como é que você faz uma coisa dessas na frente de um homem que recebe a gente desse jeito?

Seu Arlindo disse que a descompostura foi tamanha que o cabra correu para dentro do mato para chorar escondido.

Em seguida os cangaceiros pediram um tacho e fritaram a carne de um modo que ele nunca havia visto. Quando a comida estava pronta foi servida de maneira muito organizada e bastante ordeira. Cada cangaceiro tirou de dentro do seu bornal um prato de ágata e uma porção de farinha e o grupo organizou uma fila para que cada um pegasse a sua porção de carne. Após a refeição todos descansaram um pouco até que o Capitão anunciou que iriam partir. Neste momento Lampião dirigiu-se ao patriarca e perguntou quanto custara o carneiro. Imediatamente o sábio sertanejo respondeu:

 - "Num custou nada não Capitão. No dia que o sinhô vortá aqui, nóis come outro".

Lampião agradeceu e posicionou-se com seus "meninos" para partir. Neste momento o avô de Seu Arlindo dirigiu-se a ele e fez uma sábia pergunta.

 - Capitão! A polícia vai saber que o senhor esteve aqui e vai vir atrás do senhor. Quando perguntarem para onde o senhor foi, o que eu devo responder?

 - Diga a eles que nos fomos por aqui - respondeu o Rei do Cangaço, apontando para a direção onde o grupo se dirigia.

Como era previsto, no dia seguinte após a visita dos cangaceiros, a polícia chegou ao povoado, coletou algumas informações e partiu.

Infelizmente, os capítulos seguintes da história não seguiram o mesmo padrão. Lampião passou outras vezes pela Fazenda Várzea sem molestar ninguém, mas as autoridades, incapazes de atingir os cangaceiros diretamente, voltaram sua ira para os moradores do lugar. O pai de Seu Arlindo foi preso acusado de ser coiteiro, sendo conduzido para a delegacia de Santo Antônio da Glória onde sofreu muitos maus-tratos. Talvez por conta disso o pobre homem morreu prematuramente deixando o filho órfão.

Diante do relato, perguntamos a Seu Arlindo Grande se ele não tivera vontade de ingressar no cangaço e ele respondeu que sim, mas não o fez porque sua mãe pediu muito que ele assim não fizesse, pois com a morte do seu pai ela só tinha o filho a quem recorrer. Caso ele entrasse para o cangaço ela iria passar sérias privações sem ter quem cuidasse da fazenda nem dos animais.

Durante a conversa perguntamos sobre sua impressão com relação aos cangaceiros que conhecera e ele demonstrou um grande fascínio para com Virgínio, vulgo Moderno, que era cunhado de Lampião. Lembro-me bem do comentário que ele fez, com seu jeito simples de falar:

 - Eu não vou dizer que Virgínio era um homem bonito, que um homem não acha outro bonito, mas ele era um homem de "presença" que quando chegava num lugar todo mundo notava. Eu gostava muito dele.

A conversa se estendeu mais um pouco, até que finalmente chegou a hora de voltarmos para casa. Nunca mais voltei ao Povoado da Várzea, nunca mais encontrei Seu Arlindo Grande e nunca mais esqueci aquela tarde de sol em que sentado à sombra numa calçada ouvi uma história que valeu a pena ser ouvida e também vale a pena ser contada.

Ao contar histórias do tempo do cangaço não tenho pretensão de enaltecer nenhuma das partes envolvidas. Há muito tempo me livrei desse dilema infame. O cangaço teve seu tempo e seu lugar. Tentar entendê-lo à luz da sociedade que temos hoje, só nos proporcionará uma visão distorcida de um fenômeno que precisa antes ser sentido para que então possa ser entendido.

Aproveitando a oportunidade para transmitir toda minha solidariedade aos meus colegas das terras cariocas que na última semana sentiram-se como se sentiu Noé, desejo a todos uma ótima semana, com chuva branda para amenizar o calor e sol brilhante para realçar a cor.

Saúde, luz e paz.

Virgílio Agra.

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