Foto do livro de Chico Anísio com o desenho
de Ziraldo
(escrito em 28/09/2009)
Colegas de todos os níveis de lucidez.
De médico e de louco todos nós temos um pouco, portanto, cuidado ao pensar que alguém é louco, pois pode ser que outra pessoa tenha o mesmo pensamento ao seu respeito. Uma característica básica das cidades pequenas é o fato de conhecermos "todo mundo". De fato, anonimato nas cidades é algo que dura um intervalo de tempo proporcional ao tamanho das mesmas, de modo que, nas pequenas cidades, temos a oportunidade de conhecer desde os sãos até os loucos. Durante o tempo em que morei na Cidade Maravilhosa pude observar pessoas que aparentemente tinham algum tipo de distúrbio mental transitando pelas ruas e se confundindo com a multidão sem despertar a menor atenção, nem de repulsa nem de solidariedade, entre os passantes. Por outro lado, durante o tempo em que morei no interior, percebi que a notoriedade era uma característica acessível a muitas pessoas, tanto os loucos, como os nem tanto.
No período em que morei nas
terras baianas de Paulo Afonso, trabalhava na loja do meu pai e tinha como
colega, dentre outros, Stefan, um velho amigo que eu conhecia desde os tempos
em que ia pescar piabas no Panema, nos períodos em que o velho rio temporário
tinha água correndo no seu leito. Seu nome, incomum naquelas bandas, lhe foi
atribuído como homenagem ao escritor judeu-austríaco Stefan Zweig. Ele foi
criado por sua avó, Dona Sebastiana, mas, além dela, eu também tive
oportunidade de conhecer o seu pai, cujo nome era Hermínio, mas era conhecido
como Moreninho. Nos tempos em que assistência médica era um recurso raro no
sertão, ele tinha uma farmácia em Santana do Ipanema e, periodicamente,
carregava um burro com medicamentos e saía pelo sertão consultando o povo,
tratando de suas mazelas e vendendo os seus remédios de modo que os matutos
chegavam a tratá-lo como “Doutor Moreninho”. Nas horas de folga, era um
boêmio de carteirinha, gostava de participar das serenatas que naquela época
eram muito comuns nas ruas de Santana. Quando ele morreu os velhos amigos
prestaram-lhe a última homenagem, conduziram o caixão até o cemitério e lá
então, fizeram para ele a última seresta.
Na minha vivência no interior,
dentre as lições aprendidas, cheguei à conclusão que salão de barbeiro e
balcão de loja de ferragens deveriam ser classificados não como comércio, mas
como área de convivência. A loja do meu pai, Casa o Ferrageiro, é freqüentada
pelos diversos personagens da região, cada um trazendo os mais diferentes
tipos de notícias de todas as partes e este relacionamento com pessoas das diversas
cidades e povoados fazia com os vendedores da loja conhecessem cada um deles
associando o seu nome ao seu local de origem, como era o caso de Galego de
Petrolândia, Hélio de Glória, Miro e Vicente de Jeremoabo e outros tantos. Da
mesma maneira os vendedores também eram conhecidos pelo nome da loja em que
trabalhavam. Daí, assim como os demais colegas de trabalho, lá em Paulo
Afonso, o meu amigo era conhecido por muitos como Stefan do Ferrageiro.
Dentre os freqüentadores da
loja, havia um rapaz chamado Severino que todos chamam de "Severino INPS",
antiga sigla do Instituto Nacional de Seguridade Social. Segundo dizem, ele
recebia um "aposento" do INSS pelo fato de ter uma limitação
mental, mas adquiriu este apelido pelo fato de ter a mania de perambular pelos
cantos, ouvir as conversas e, ao saber de algum caso de falecimento partia imediatamente
para contar a notícia a todos que encontrava pela rua, para pedir em troca da
informação fornecida um “trocadinho hoje”.
Sempre ouvi dizer que "Severino INPS" morava com sua avó que, por sinal, cuidava bem dele. Por ser uma pessoa de poucas posses suas vestimentas eram, naturalmente, modestas. Porém, eu nunca o vi usando roupas esfarrapadas ou trajado de maneira que viesse a denotar falta de zelo por parte da sua família. Onde ele chegava dava logo seu recado, pedia um trocadinho e, sendo atendido ou não, saía logo para dar a notícia ao próximo passante, sem nunca ter agido de forma violenta ou acintosa com ninguém. De modo que, o ato de pedir um “trocadinho hoje”, era percebido por ele como uma gorjeta por um serviço de informação prestada e jamais como mendicância. "INPS" ia sempre à Casa O Ferrageiro dar a "notícia" do dia. Certa feita contou que uma pessoa havia morrido e ao ser questionado sobre a causa daquela morte, respondeu: - O cara "tava" dormindo, quando acordou "tava" morto. Noutra ocasião quando ele chegou, pediu o “trocadinho hoje” e não deu notícia nenhuma. Aí meu pai perguntou: - E aí Severino? Quem foi que morreu hoje? - Ninguém. Tem um trocadinho hoje? Diante da resposta papai então resolveu tirar uma onda com ele e falou: - Sabe quem morreu?
- Sei não, Sinhô.
- Quem morreu foi Stefan. Stefan do Ferrageiro.
Stefan, que está vivo até os
dias de hoje e gozando de boa saúde, estava naquele momento trabalhando no
balcão e nem sequer imaginava que seu nome estava sendo citado a poucos
metros de distância.
Acredito que, ao receber a notícia, "INPS" deve ter se sentido revigorado, afinal de contas, um dia sem notícia de morte significava menos gorjetas no bolso. Ele então partiu imediatamente para a rua para transmitir a todos a novidade. Como efeito, dentro de poucos minutos, muitos amigos começaram a ligar para a loja para confirmar a notícia e outros queriam saber quando seria o enterro. Com certeza, ao tomar conhecimento dos fatos todos riram, porém, durante algum tempo, Stefan continuou encontrando pessoas na rua que se surpreendiam por avistá-lo, pois o tinham como morto e enterrado.
Colegas no momento em que me
despeço e desejo a todos uma boa semana de trabalho, gostaria de cumprimentar
a todos os meus colegas "não gente" que completaram mais um ano
exercendo uma profissão de doidos.
Saúde e paz. Virgílio Agra |
domingo, 22 de julho de 2012
Notas de Falecimento
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