domingo, 8 de julho de 2012

Café quente, adoçado a bala


Museu Theo Brandão, Maceió-AL

(texto escrito originalmente em 24/08/2009)

Colegas de todos os valores.

O lado bom de ser um contador de histórias é que quando você pensa que contou a última logo, logo aparece outra, ou então você descobre um fato novo e então pode recontar, com mais detalhes, uma história que já foi contada anteriormente.

Olhando pela vidraça do prédio onde trabalho, no centro de Maceió, vejo a Praça Sinimbu, vejo os fundos do Museu Theo Brandão e mais ao fundo avisto o Porto de Maceió e o mar azul-esverdeado do litoral caeté.

Há mais de 50 anos atrás, a praça era cortada pelo Riacho Salgadinho, um riacho de águas transparentes onde havia muitos caranguejos e peixes. Às suas margens havia uma casa muito bonita, de costas para o riacho e de frente para o mar, construída pela família Machado, uma família muito rica que havia em Maceió na primeira metade do século XX. Às margens do Salgadinho tinha também outra casa, menos pomposa, mas, para mim, muito mais significativa, era a casa de Tio Natalício, um irmão do meu avô.

Olhar a paisagem da Praça Sinimbu faz com que me lembre do meu velho tio e sempre que eu penso nele me vem à memória uma história que aconteceu muito antes de eu ter nascido e que me foi contada pela minha avó.

Por volta de 1919, antes de Virgulino se tornar Lampião, o bando dos Porcino era quem amedrontava o sertão alagoano. Nessa época o chefe daquele bando mandou uma carta para o povoado de Poço das Trincheiras dizendo que preparassem um café, porque eles iriam fazer uma visita ao lugar.

O meu bisavô, Sebastião Medeiros, chefe daquela família que era respeitada em toda a região, entendeu muito bem o recado. A visita, muito provavelmente, não seria cordial, portanto, pelo sim ou pelo não, resolveu esperar o visitante com ferro e chumbo quente. O povoado à época tinha poucas casas e todos os seus moradores eram praticamente da mesma família, um verdadeiro clã. Como líder daquele lugar e daquelas pessoas, sabia o que tinha que ser feito, logo, ordenou que as mulheres e crianças fossem se esconder no mato. Os homens foram armados, divididos em duplas, e passaram a vigiar os acessos ao lugarejo, montando guarda em pontos estrategicamente escolhidos, prontos para resistir à iminente invasão. Como as notícias que os cangaceiros permaneciam na região não paravam de chegar, a cada dia que passava a tensão aumentava. Tentando garantir um bom equilíbrio entre as duplas que mantinham a guarda, o Velho Medeiros procurou colocar sempre um homem jovem com outro mais velho, um defensor mais aguerrido com outro... Digamos assim, menos impetuoso e mais experiente.

Tio Natalício foi um dos defensores do lugar, na época era apenas um rapaz e, com certeza, não tinha muita afinidade com a arte da guerra. Em um desses dias, estava ele de guarda numa estrada que dava acesso ao povoado, quando de repente, lá longe, avistou uma poeira e uma tropa que avançava exatamente na direção do seu posto de vigilância. As estradas daquela época não passavam de trilhas onde os únicos veículos capazes de transitá-las eram os carros-de-boi. O pavor tomou conta dele. Os cangaceiros eram combatentes ferozes e muito habilidosos, enfrentá-los era a mesma coisa que encarar a morte. Antecipando o que estava para acontecer Tio Natalício não contou conversa, largou o rifle e correu, digo, tentou correr. O seu companheiro de guarda era um seu tio, mais velho, experiente e com muita coragem tanto para morrer quanto para matar. Vendo a cena, antecipou-se ao sobrinho e pegando-o pela beca apontou o revólver para sua cabeça e gritou:

 - Natalício! Se você correr eu "lhe" mato.

Em seguida soltou-lhe a camisa e manteve a arma apontada e engatilhada. Naquela época o cabra tinha que ser macho, se assim não fosse, melhor seria estar morto. Percebendo o dilema em que se encontrava, o jovem Natalício tomou sua decisão e, mesmo com medo, pegou novamente o rifle e se preparou para enfrentar o que... E quem viesse. E qual não foi a sua surpresa quando descobriu que o bando que se aproximava era uma tropa de burros que transportava mercadorias para o comércio do sertão.

Os dias se passaram e os Porcino não apareceram. Assim, dia após dia, a tensão foi diminuindo, as pessoas foram voltando para suas casas e retomando suas atividades corriqueiras. Pouco tempo depois meu bisavô foi procurado por um compadre que morava no vizinho povoado de Maravilha. Este veio informar do casamento da sua filha, mas lamentando não poder fazer uma festa porque os Porcino haviam avisado que, se ele fizesse a festa eles iriam lá para acabar na bala. Não sei exatamente por quais meios, mas havia a informação de que o bando encontrava-se no povoado Olho d’Água do Chicão, a atual cidade de Ouro Branco, vizinho a Maravilha. Vozinho então disse para o compadre:

 - Volte para Maravilha, faça a festa de casamento que eu vou lá para ver se os cabras aparecem.

No dia combinado o velho Medeiros reuniu um grupo de homens experientes e bem armados e partiu para a casa do compadre, de modo que o casamento se realizou, a festa durou a noite toda e os cabras não apareceram para tomar sequer um refresco.

Pela manhã, Vozinho mandou um recado para o Olho d’Água do Chicão com os seguintes dizeres:

 "Preparei um café e você não veio. Vou levar o café aí".

Partiu em direção ao Ouro Branco onde finalmente houve uma troca de tiros. Ao que me consta ninguém morreu, mas daquele dia em diante uma relação de respeito mútuo foi firmemente estabelecida.

O tempo passou, Tio Natalício tornou-se um adulto, veio morar em Maceió, casou, trabalhava num banco e morava numa rua pacata, tendo aos fundos o Riacho Salgadinho.

Hoje, o Riacho Salgadinho não corta mais a Praça Sinimbu, canalizado e poluído, teve seu curso desviado e deságua há algumas centenas de metros antes, depositando lixo na outrora bela Praia da Avenida. A casa da família Machado foi completamente restaurada e hoje é a sede do Museu Theo Brandão, mantido pela Universidade Federal de Alagoas. A mesma sorte não teve a casa de Tio Natalício, esta foi demolida e seus escombros sequer foram removidos do local que um dia a abrigou.

Pois é, colegas. Desejando que Deus vos ilumine nas decisões que um dia tiverem que tomar, aproveito a oportunidade para desejar a todos uma ótima semana de trabalho.

Saúde e paz.

Virgílio Agra.

PS: A história aqui contada já havia sido escrita baseada nos relatos da minha avó Lindalva, mas quero agradeço ao meu Tio Olivan Medeiros e ao escritor Antônio Amaury Correia de Araújo que me passaram outras informações que a complementaram.

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