Sagrada Família
Alunos da 1ª e 2ª série – 1969
Em pé à esquerda Profa. Fátima, ao centro Irmã Letícia e à
direita Profa. Evangelina
Colegas
de todas as escolas
Onde se cruza a história de uma jovem holandesa e de um simples caeté?
A história que vou contar hoje começou na cidade de Roterdã, na Holanda, quando em 1929 nasceu Laetitia Van Fulpen. Dez anos depois, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, este país foi invadido pela Alemanha que impôs um racionamento de alimentos aos cidadãos holandeses, de modo que, durante este período, o café da manhã da família era apenas uma fatia de pão para cada um. A cada dia, seu pai saia para arranjar alguma coisa para comer e, de acordo com o que obtivesse, à noite era servida uma sopa com aquilo que ele conseguira.
Desde menina Laetitia sentiu a vocação para a vida religiosa, de modo que um dia tornou-se freira e foi para o antigo Congo Belga, onde abriu uma escola enquanto outras freiras atuavam junto à população local na área de saúde e assistência aos mais carentes. Em 1960, o Congo Belga conquistou sua independência e ela, juntamente com as outras missionárias, teve que deixar o país. No entanto, algum tempo depois, todas retornaram para dar continuidade aos seus trabalhos. Durante este novo período ocorreu uma guerra civil no país e, em dado momento, foi transmitida uma ordem às tropas posicionadas na região onde ela trabalhava para que fossem mortos todos os mercenários. Como os cabras nunca tinham ouvido a palavra "mercenários", procuraram no seu linguajar corrente algo que se assemelhasse e entenderam que tratava-se dos "missionários". Eu sei que o assunto lembra uma piada, mas não era. Logo eles partiram para a vila onde as freiras estavam, prenderam todas elas e as posicionaram para execução. Neste momento, alguns soldados começaram a questionar a ordem porque tinham filhos que estudavam na escola que as freiras mantinham e outros, cujas esposas tinham ficado doentes, haviam recebido assistência médica da parte delas. O tempo que durou a discussão entre os homens não foi longo, mas foi suficiente para que chegasse a contra-ordem e assim elas escaparam da morte certa. No entanto, foram deportadas e não mais puderam voltar ao país africano.
Enquanto isso, lá na beira do rio Ipanema, no sertão de Alagoas, eu ainda era menino pequeno e só sabia que existia escola porque via minhas irmãs falarem que iam à escola e porque eu as via estudando sob a orientação de minha mãe, que na época usava o auxílio de uma "pequena" palmatória. No início de 1968 meus pais disseram que eu iria para uma escola que começaria a funcionar naquele ano aproveitando duas salas que existiam na igreja da Sagrada Família. Lá, fui estudar a Cartilha com Dona Sebastiana, digo Dona porque naquele tempo menino não chamava professora de tia. Para mim foi um mundo novo que se abriu. Lá eu tinha muitos meninos para brincar e, no quintal da igreja não faltava espaço para correr e touceiras de capim onde brincávamos de esconder. Mas, o que mais me impressionava era a Diretora da escola. Chamava-se Irmã Letícia, vinha da Holanda, um país que eu não sabia onde ficava, falava com um sotaque bem carregado e era a primeira freira que eu vi na vida. Era branca e seus braços eram cheios de sardas e, na minha visão de criança, parecia uma pessoa enorme. Os trajes que ela usava eu nunca esqueci, a cabeça estava sempre coberta por um véu de tecido, a blusa era normalmente de cor clara de mangas curtas e a saia vinha a até o meio da canela e era de uma cor acinzentada. Uma coisa que me chamou a atenção, era o fato de ela usar o relógio no lado interno do braço, de modo que, para ler as horas, ela sempre tinha que mostrar a palma da mão.
Irmã Letícia chegou a Santana do Ipanema graças ao trabalho do Padre Cirilo. Começou seu projeto de educação no sertão de Alagoas nos fundos da Igreja da Sagrada Família. No ano seguinte, 1969, a escola passou a ocupar o prédio onde funcionara a sede do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) em Santana. Para minha felicidade, o prédio era exatamente em frente à minha casa e aí, era só atravessar a rua e estava na escola.
Pelo fato de ser dirigido por uma freira, o colégio passou a ser conhecido pela população como o "Colégio das Freiras". Apesar dos poucos recursos e instalações modestas, a escola oferecia uma educação de qualidade como nunca se vira antes naquela cidade. Lá estudava o filho do rico e o filho do pobre. Quem podia pagava mais, quem podia menos pagava menos e quem não podia, nada pagava. Quando os recursos financeiros escasseavam a diligente freira ia buscá-los no seu país de origem. Como para alguns alunos faltava até condições de terem uma roupa boa para assistir as aulas, Irmã Letícia trazia roupas da Holanda para eles.
Acho que um dia de vida da Irmã tinha mais de 24 horas, porque além de todos os trabalhos administrativos do cargo de diretoria, ela ainda encontrava tempo para dar as aulas de religião e nos ensinar a cantar, fazendo aqueles movimentos próprios de uma regente de orquestra. Ela também coordenava a nossa participação nos eventos religiosos da cidade e, apesar de ser estrangeira, conduzia pessoalmente os ensaios dos alunos para os eventos comemorativos das nossas datas cívicas, além de encontrar tempo para encadernar nossas provas, prendendo as folhas de papel com um laçinho de fita.
Em 1972 o Instituto Sagrada Família formou a sua primeira turma do antigo Curso Primário e eu tenho muito orgulho de dizer que fui um dos componentes desta turma histórica. Na nossa "formatura" os próprios alunos proferiram discurso, encenaram teatro e, naturalmente, houve a entrega dos "diplomas". Como a escola não oferecia, naquela ocasião, o curso ginasial, todos tiveram que ir para outras escolas, em Santana do Ipanema ou em outras cidades. Eu não sabia, mas aquele foi o dia em que aquelas 20 crianças estiveram juntas pela última vez.
O tempo passou, o colégio cresceu, novas turmas foram criadas, novas salas foram construídas e mais e mais alunos passaram pelas suas bancas. Um dia, acho que eu já estava na universidade, vivendo nas bandas da beira do mar, passeando por minha cidade natal tive vontade de visitar minha primeira escola. Lá chegando, fui recebido com um imenso sorriso e aquele abraço gostoso que a Irmã Letícia sempre teve para todos os seus "filhos". Naquela ocasião tive a honra de visitar todas as instalações do Instituto Sagrada Família, conduzido pela sua ilustre Diretora que encontrou um tempo na sua agenda de mais de 24 horas para me acompanhar.
Quando o Sagrada foi para o prédio do DNOCS só havia quatro salas de aula, uma sala para os professores, outra para a diretoria e uns banheiros simples, com piso de cimento alisado. Quando o visitei pela última vez, encontrei uma escola dotada de muitas outras salas, auditório, laboratórios, biblioteca e uma simpática capelinha que Irmã Letícia me disse, ser o seu lugar favorito.
O tempo passou e um dia o Padre Cirilo morreu. Tempos depois a Irmã Letícia foi transferida para outra cidade e a direção da escola passou para outras mãos. Certo dia o telhado da escola desabou, prenunciando a marcha da história. Campanhas foram feitas para a recuperação do prédio, recursos foram adquiridos, mas o destino do "Colégio das Freiras" já estava traçado. Hoje, no antigo prédio do DNOCS, funciona uma escola da rede municipal.
Há muitos anos o Instituto Sagrada Família deixou de existir como instituição formal de ensino. Acabaram-se os tempos em que as provas eram encadernadas com laçinhos, laços feitos por mãos que afagavam alunos como se fossem filhos, como também se acabaram os tempos em que uma freira andava de bicicleta pelas ruas de Santana do Ipanema. Mas, está muito longe de chegar o tempo em que o Sagrada deixará de existir nos corações e mentes de todos aqueles que passaram pelas suas bancas, afinal de contas, família é sagrada e é para sempre.
Irmã Letícia não trabalhou sozinha em Santana do Ipanema, é importante e justo reconhecer que o trabalho realizado teve a participação importantíssima da Irmã Ana, na área da educação e da Irmã Leoncia, que dirigia um fusca levando saúde às áreas onde nunca havia chegado um médico. Irmã Letícia e Irmã Leoncia encontram-se atualmente recolhidas na Casa Mãe da sua ordem religiosa, na cidade de Asten, na Holanda. Irmã Ana, lamentavelmente teve uma morte trágica na década de 80. A todas as jovens holandesas que um dia, deixando para trás seus lares e suas famílias dedicaram suas vidas para o bem dos menos favorecidos, o meu sincero obrigado.
Caros colegas, tendo em vista mais uma semana que se inicia, quando tiverem diante de si as preocupações e aperreios do dia-a-dia, procurem lembrar-se de uma passagem dos seus tempos de infância. Eu tenho a impressão que todos acharão, nem que seja no fundo do baú, boas lembranças que, com certeza, acalentarão a alma.
Saúde, luz e paz
Virgílio Agra
Onde se cruza a história de uma jovem holandesa e de um simples caeté?
A história que vou contar hoje começou na cidade de Roterdã, na Holanda, quando em 1929 nasceu Laetitia Van Fulpen. Dez anos depois, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, este país foi invadido pela Alemanha que impôs um racionamento de alimentos aos cidadãos holandeses, de modo que, durante este período, o café da manhã da família era apenas uma fatia de pão para cada um. A cada dia, seu pai saia para arranjar alguma coisa para comer e, de acordo com o que obtivesse, à noite era servida uma sopa com aquilo que ele conseguira.
Desde menina Laetitia sentiu a vocação para a vida religiosa, de modo que um dia tornou-se freira e foi para o antigo Congo Belga, onde abriu uma escola enquanto outras freiras atuavam junto à população local na área de saúde e assistência aos mais carentes. Em 1960, o Congo Belga conquistou sua independência e ela, juntamente com as outras missionárias, teve que deixar o país. No entanto, algum tempo depois, todas retornaram para dar continuidade aos seus trabalhos. Durante este novo período ocorreu uma guerra civil no país e, em dado momento, foi transmitida uma ordem às tropas posicionadas na região onde ela trabalhava para que fossem mortos todos os mercenários. Como os cabras nunca tinham ouvido a palavra "mercenários", procuraram no seu linguajar corrente algo que se assemelhasse e entenderam que tratava-se dos "missionários". Eu sei que o assunto lembra uma piada, mas não era. Logo eles partiram para a vila onde as freiras estavam, prenderam todas elas e as posicionaram para execução. Neste momento, alguns soldados começaram a questionar a ordem porque tinham filhos que estudavam na escola que as freiras mantinham e outros, cujas esposas tinham ficado doentes, haviam recebido assistência médica da parte delas. O tempo que durou a discussão entre os homens não foi longo, mas foi suficiente para que chegasse a contra-ordem e assim elas escaparam da morte certa. No entanto, foram deportadas e não mais puderam voltar ao país africano.
Enquanto isso, lá na beira do rio Ipanema, no sertão de Alagoas, eu ainda era menino pequeno e só sabia que existia escola porque via minhas irmãs falarem que iam à escola e porque eu as via estudando sob a orientação de minha mãe, que na época usava o auxílio de uma "pequena" palmatória. No início de 1968 meus pais disseram que eu iria para uma escola que começaria a funcionar naquele ano aproveitando duas salas que existiam na igreja da Sagrada Família. Lá, fui estudar a Cartilha com Dona Sebastiana, digo Dona porque naquele tempo menino não chamava professora de tia. Para mim foi um mundo novo que se abriu. Lá eu tinha muitos meninos para brincar e, no quintal da igreja não faltava espaço para correr e touceiras de capim onde brincávamos de esconder. Mas, o que mais me impressionava era a Diretora da escola. Chamava-se Irmã Letícia, vinha da Holanda, um país que eu não sabia onde ficava, falava com um sotaque bem carregado e era a primeira freira que eu vi na vida. Era branca e seus braços eram cheios de sardas e, na minha visão de criança, parecia uma pessoa enorme. Os trajes que ela usava eu nunca esqueci, a cabeça estava sempre coberta por um véu de tecido, a blusa era normalmente de cor clara de mangas curtas e a saia vinha a até o meio da canela e era de uma cor acinzentada. Uma coisa que me chamou a atenção, era o fato de ela usar o relógio no lado interno do braço, de modo que, para ler as horas, ela sempre tinha que mostrar a palma da mão.
Irmã Letícia chegou a Santana do Ipanema graças ao trabalho do Padre Cirilo. Começou seu projeto de educação no sertão de Alagoas nos fundos da Igreja da Sagrada Família. No ano seguinte, 1969, a escola passou a ocupar o prédio onde funcionara a sede do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) em Santana. Para minha felicidade, o prédio era exatamente em frente à minha casa e aí, era só atravessar a rua e estava na escola.
Pelo fato de ser dirigido por uma freira, o colégio passou a ser conhecido pela população como o "Colégio das Freiras". Apesar dos poucos recursos e instalações modestas, a escola oferecia uma educação de qualidade como nunca se vira antes naquela cidade. Lá estudava o filho do rico e o filho do pobre. Quem podia pagava mais, quem podia menos pagava menos e quem não podia, nada pagava. Quando os recursos financeiros escasseavam a diligente freira ia buscá-los no seu país de origem. Como para alguns alunos faltava até condições de terem uma roupa boa para assistir as aulas, Irmã Letícia trazia roupas da Holanda para eles.
Acho que um dia de vida da Irmã tinha mais de 24 horas, porque além de todos os trabalhos administrativos do cargo de diretoria, ela ainda encontrava tempo para dar as aulas de religião e nos ensinar a cantar, fazendo aqueles movimentos próprios de uma regente de orquestra. Ela também coordenava a nossa participação nos eventos religiosos da cidade e, apesar de ser estrangeira, conduzia pessoalmente os ensaios dos alunos para os eventos comemorativos das nossas datas cívicas, além de encontrar tempo para encadernar nossas provas, prendendo as folhas de papel com um laçinho de fita.
Em 1972 o Instituto Sagrada Família formou a sua primeira turma do antigo Curso Primário e eu tenho muito orgulho de dizer que fui um dos componentes desta turma histórica. Na nossa "formatura" os próprios alunos proferiram discurso, encenaram teatro e, naturalmente, houve a entrega dos "diplomas". Como a escola não oferecia, naquela ocasião, o curso ginasial, todos tiveram que ir para outras escolas, em Santana do Ipanema ou em outras cidades. Eu não sabia, mas aquele foi o dia em que aquelas 20 crianças estiveram juntas pela última vez.
O tempo passou, o colégio cresceu, novas turmas foram criadas, novas salas foram construídas e mais e mais alunos passaram pelas suas bancas. Um dia, acho que eu já estava na universidade, vivendo nas bandas da beira do mar, passeando por minha cidade natal tive vontade de visitar minha primeira escola. Lá chegando, fui recebido com um imenso sorriso e aquele abraço gostoso que a Irmã Letícia sempre teve para todos os seus "filhos". Naquela ocasião tive a honra de visitar todas as instalações do Instituto Sagrada Família, conduzido pela sua ilustre Diretora que encontrou um tempo na sua agenda de mais de 24 horas para me acompanhar.
Quando o Sagrada foi para o prédio do DNOCS só havia quatro salas de aula, uma sala para os professores, outra para a diretoria e uns banheiros simples, com piso de cimento alisado. Quando o visitei pela última vez, encontrei uma escola dotada de muitas outras salas, auditório, laboratórios, biblioteca e uma simpática capelinha que Irmã Letícia me disse, ser o seu lugar favorito.
O tempo passou e um dia o Padre Cirilo morreu. Tempos depois a Irmã Letícia foi transferida para outra cidade e a direção da escola passou para outras mãos. Certo dia o telhado da escola desabou, prenunciando a marcha da história. Campanhas foram feitas para a recuperação do prédio, recursos foram adquiridos, mas o destino do "Colégio das Freiras" já estava traçado. Hoje, no antigo prédio do DNOCS, funciona uma escola da rede municipal.
Há muitos anos o Instituto Sagrada Família deixou de existir como instituição formal de ensino. Acabaram-se os tempos em que as provas eram encadernadas com laçinhos, laços feitos por mãos que afagavam alunos como se fossem filhos, como também se acabaram os tempos em que uma freira andava de bicicleta pelas ruas de Santana do Ipanema. Mas, está muito longe de chegar o tempo em que o Sagrada deixará de existir nos corações e mentes de todos aqueles que passaram pelas suas bancas, afinal de contas, família é sagrada e é para sempre.
Irmã Letícia não trabalhou sozinha em Santana do Ipanema, é importante e justo reconhecer que o trabalho realizado teve a participação importantíssima da Irmã Ana, na área da educação e da Irmã Leoncia, que dirigia um fusca levando saúde às áreas onde nunca havia chegado um médico. Irmã Letícia e Irmã Leoncia encontram-se atualmente recolhidas na Casa Mãe da sua ordem religiosa, na cidade de Asten, na Holanda. Irmã Ana, lamentavelmente teve uma morte trágica na década de 80. A todas as jovens holandesas que um dia, deixando para trás seus lares e suas famílias dedicaram suas vidas para o bem dos menos favorecidos, o meu sincero obrigado.
Caros colegas, tendo em vista mais uma semana que se inicia, quando tiverem diante de si as preocupações e aperreios do dia-a-dia, procurem lembrar-se de uma passagem dos seus tempos de infância. Eu tenho a impressão que todos acharão, nem que seja no fundo do baú, boas lembranças que, com certeza, acalentarão a alma.
Saúde, luz e paz
Virgílio Agra
(Escrito em 02/05/2011)
Relação dos
20 alunos que concluíram a 4ª Série do Ensino Primário - 1972