Cine Alvorada – 1967
Colegas de todas as perguntas.
Desde os meus tempos de criança em Santana, lá na beira do Panema, no sertão alagoano, eu gostava muito de ir ao cinema. Quando fui estudar na Veneza brasileira, passei a morar no bairro da Boa Vista no mesmo quarteirão em que funcionava o Cine Veneza e muito próximo a várias salas de exibição como os cinemas São Luiz, Moderno, Art Palácio e outros. Naquela época, o cinema era uma diversão muito barata, de modo que o meu gosto por este lazer e a proximidade me permitia ir ao cinema, praticamente, todos os finais de semana. Quando cheguei aos meus 16 para 17 anos descobri que no Teatro do Parque, bem ali na Rua do Hospício, passavam filmes que o regime militar não liberava para o circuito comercial de cinemas, podendo ser exibidos em “salas especiais”. Passei a freqüentar essas sessões o que me permitiu assistir excelentes produções. Também nessa mesma época, o Art Palácio incluiu na sua programação uma sessão de arte todos os sábados que eu passei a freqüentar. O tempo passou, surgiu o videocassete e o DVD, as antigas salas de cinema passaram a exibir filmes de kung-fu e pornografia, depois fecharam e finalmente foram convertidas em igrejas evangélicas.
À semana passada resolvemos, eu e minha esposa, fazer um programa que há tempos não realizávamos, fomos assistir um filme na telona. Em cartaz, o "Tropa de Elite, osso duro de roer, 2". O excelente filme de José Padilha, estrelado por Wagner Moura, um menino nascido lá pras bandas da cidade de Rodelas, na beira do Velho Chico, lá no sertão baiano. Achei o filme excelente, me permitam repetir, mas algumas das suas cenas, ao provocarem aplausos na platéia, fizeram o meu pensamento fazer um breve regresso aos tempos em que, ainda menino, assistia as matinês de domingo no cinema de Seu Tibúrcio Soares, o Cine Alvorada, lá em Santana do Ipanema.
Ainda alcancei o tempo em que se assistia em preto e branco os filmes de Tarzan, Carlitos e as chanchadas da Atlântida e Vera Cruz com Grande Otelo, Costinha, Cantinflas e Mazzaropi. O filme podia ser em tons de cinza, mas a emoção era muito viva. Lembro-me do dia em que o Lions Clube Santanense organizou com fins beneficentes uma exibição de um filme de Tarzan, inédito na cidade. O filme era de "Censura Livre", mas como a exibição era à noite eu só pude assistir porque fui com meus pais. O evento foi o máximo. Apesar do preço do ingresso ser um pouco mais caro que aquele de uma exibição normal, o cinema lotou, com gente assistindo o filme em pé.
Quando eu tinha uns oito a nove anos de idade o cinema anunciou uma única apresentação do filme de sucesso internacional, "Dio, come ti amo!". A divulgação se dava naquela época através do maior veículo de comunicação de massas da cidade, o carro de som de Francisco Soares. A cidade inteira foi assistir ao filme, menos eu. Mamãe não deixou de jeito nenhum, porque o filme ia ser à noite, iria ter muita gente, eu poderia me perder, me machucar, sumir, desaparecer, errar o caminho de casa, etc, etc, etc. Fui dormir triste naquela noite, todo mundo podia assistir o filme, menos eu. No dia seguinte, no entanto, minhas esperanças renovaram-se quando através dos alto-falantes do carro de som, Chico Soares anunciou:
- Ontem duas mil pessoas assistiram "Dio, come ti amo!", devido ao grande sucesso da apresentação e atendendo a pedidos, o Cine Alvorada fará uma reapresentação deste grande sucesso. Não percam, somente hoje às oito horas da noite "Dio, come ti amo!" no Cine Alvorada.
Naquela época o cinema já havia mudado de dono e Seu Geraldo, o novo proprietário, morava vizinho à minha casa. Conversando com seu filho, descobri rapidamente que as "duas mil pessoas" não passavam de uma jogada de marketing de Chico Soares. A estimativa real era que o público tinha atingido a cifra de mil espectadores, pois o cinema tinha na realidade capacidade para setecentas pessoas sentadas, um número muito bom para uma sala de exibição numa pequena cidade do sertão alagoano. Mas, o melhor de tudo foi que, desta vez, mamãe me deixou assistir o filme. Foi uma noite inesquecível, o cinema lotou mais uma vez e eu confesso que até os dias de hoje me emociono com a música tema do filme, interpretada por Gigliola Cinquetti.
A transição do preto-e-branco para o colorido foi marcada fortemente pelos filmes americanos de faroeste. Os enredos "água-com-açúcar", combinando cores e uma boa trilha sonora fazia com que a meninada assistisse os filmes de "có-bói" sem nem ao menos piscar os olhos. A história nos envolvia de maneira tal que, quando parecia que tudo ia dar errado, chegávamos à beira do desespero. Aí então aparecia o "artista" em cima do seu cavalo, atirando com um revolver cujas balas nunca se acabavam e nunca erravam o alvo, e a meninada então explodia em aplausos para aquele herói vingador, a encarnação do próprio bem contra o mal, representado sempre por índios ou mexicanos. Acho engraçado lembrar que sempre chamávamos o herói de “artista”, a expressão mocinho, só conheci anos depois.
Desde os meus tempos de criança em Santana, lá na beira do Panema, no sertão alagoano, eu gostava muito de ir ao cinema. Quando fui estudar na Veneza brasileira, passei a morar no bairro da Boa Vista no mesmo quarteirão em que funcionava o Cine Veneza e muito próximo a várias salas de exibição como os cinemas São Luiz, Moderno, Art Palácio e outros. Naquela época, o cinema era uma diversão muito barata, de modo que o meu gosto por este lazer e a proximidade me permitia ir ao cinema, praticamente, todos os finais de semana. Quando cheguei aos meus 16 para 17 anos descobri que no Teatro do Parque, bem ali na Rua do Hospício, passavam filmes que o regime militar não liberava para o circuito comercial de cinemas, podendo ser exibidos em “salas especiais”. Passei a freqüentar essas sessões o que me permitiu assistir excelentes produções. Também nessa mesma época, o Art Palácio incluiu na sua programação uma sessão de arte todos os sábados que eu passei a freqüentar. O tempo passou, surgiu o videocassete e o DVD, as antigas salas de cinema passaram a exibir filmes de kung-fu e pornografia, depois fecharam e finalmente foram convertidas em igrejas evangélicas.
À semana passada resolvemos, eu e minha esposa, fazer um programa que há tempos não realizávamos, fomos assistir um filme na telona. Em cartaz, o "Tropa de Elite, osso duro de roer, 2". O excelente filme de José Padilha, estrelado por Wagner Moura, um menino nascido lá pras bandas da cidade de Rodelas, na beira do Velho Chico, lá no sertão baiano. Achei o filme excelente, me permitam repetir, mas algumas das suas cenas, ao provocarem aplausos na platéia, fizeram o meu pensamento fazer um breve regresso aos tempos em que, ainda menino, assistia as matinês de domingo no cinema de Seu Tibúrcio Soares, o Cine Alvorada, lá em Santana do Ipanema.
Ainda alcancei o tempo em que se assistia em preto e branco os filmes de Tarzan, Carlitos e as chanchadas da Atlântida e Vera Cruz com Grande Otelo, Costinha, Cantinflas e Mazzaropi. O filme podia ser em tons de cinza, mas a emoção era muito viva. Lembro-me do dia em que o Lions Clube Santanense organizou com fins beneficentes uma exibição de um filme de Tarzan, inédito na cidade. O filme era de "Censura Livre", mas como a exibição era à noite eu só pude assistir porque fui com meus pais. O evento foi o máximo. Apesar do preço do ingresso ser um pouco mais caro que aquele de uma exibição normal, o cinema lotou, com gente assistindo o filme em pé.
Quando eu tinha uns oito a nove anos de idade o cinema anunciou uma única apresentação do filme de sucesso internacional, "Dio, come ti amo!". A divulgação se dava naquela época através do maior veículo de comunicação de massas da cidade, o carro de som de Francisco Soares. A cidade inteira foi assistir ao filme, menos eu. Mamãe não deixou de jeito nenhum, porque o filme ia ser à noite, iria ter muita gente, eu poderia me perder, me machucar, sumir, desaparecer, errar o caminho de casa, etc, etc, etc. Fui dormir triste naquela noite, todo mundo podia assistir o filme, menos eu. No dia seguinte, no entanto, minhas esperanças renovaram-se quando através dos alto-falantes do carro de som, Chico Soares anunciou:
- Ontem duas mil pessoas assistiram "Dio, come ti amo!", devido ao grande sucesso da apresentação e atendendo a pedidos, o Cine Alvorada fará uma reapresentação deste grande sucesso. Não percam, somente hoje às oito horas da noite "Dio, come ti amo!" no Cine Alvorada.
Naquela época o cinema já havia mudado de dono e Seu Geraldo, o novo proprietário, morava vizinho à minha casa. Conversando com seu filho, descobri rapidamente que as "duas mil pessoas" não passavam de uma jogada de marketing de Chico Soares. A estimativa real era que o público tinha atingido a cifra de mil espectadores, pois o cinema tinha na realidade capacidade para setecentas pessoas sentadas, um número muito bom para uma sala de exibição numa pequena cidade do sertão alagoano. Mas, o melhor de tudo foi que, desta vez, mamãe me deixou assistir o filme. Foi uma noite inesquecível, o cinema lotou mais uma vez e eu confesso que até os dias de hoje me emociono com a música tema do filme, interpretada por Gigliola Cinquetti.
A transição do preto-e-branco para o colorido foi marcada fortemente pelos filmes americanos de faroeste. Os enredos "água-com-açúcar", combinando cores e uma boa trilha sonora fazia com que a meninada assistisse os filmes de "có-bói" sem nem ao menos piscar os olhos. A história nos envolvia de maneira tal que, quando parecia que tudo ia dar errado, chegávamos à beira do desespero. Aí então aparecia o "artista" em cima do seu cavalo, atirando com um revolver cujas balas nunca se acabavam e nunca erravam o alvo, e a meninada então explodia em aplausos para aquele herói vingador, a encarnação do próprio bem contra o mal, representado sempre por índios ou mexicanos. Acho engraçado lembrar que sempre chamávamos o herói de “artista”, a expressão mocinho, só conheci anos depois.
Minha paixão pela sétima arte era
tamanha que quando o filme terminava, as luzes se acendiam e as portas de saída
eram abertas, eu só saía da sala quando via na tela a famosa frase "THE
END". Do lado de fora, a meninada invariavelmente cumpria o ritual de
comparar as fotos do cartaz do filme com as cenas exibidas, mas antes de voltar
para casa eu tinha uma tarefa a fazer, do outro lado da praça, na Padaria Royal,
de Seu Raimundo, tinha que comprar pão crioulo quentinho para o café da noite.
Era minha obrigação de domingo que eu tinha que cumprir. Em seguida, eu subiria
a pé, mas feliz, as ladeiras de Santana.
Dentre as coisas boas que o tempo
proporciona, uma delas é a possibilidade de observar as transformações pelas
quais o mundo passa, de modo que é impossível um freqüentador dos cinemas na
década de 70 e 80 entrar numa sala de exibição de hoje sem realizar mentalmente
uma comparação entre o passado e o presente. As salas de cinema antigamente
eram grandes, hoje são pequenas. As pipocas eram vendidas nuns saquinhos de
papel que ficavam embebidos com a manteiga que se colocava sobre elas, hoje são
vendidas em grandes caixas de um papelão especial bem mais adequado para conter
o alimento. Antigamente não se entrava nos cinemas com refrigerantes, hoje os
mesmos são vendidos em copos enormes com capacidade até 1 litro. Assisti muitos
filmes, sentado em cadeiras com assento de madeira, hoje as poltronas são todas
acolchoadas. Apesar dessas mudanças, umas para melhor outras não, uma coisa
felizmente não mudou, a capacidade do cinema de extrair da plateia aplausos,
risos ou lágrimas incontidas, fruto da emoção causada pelo seu encanto. Mas o
tempo passou e dentre as coisas boas que ele levou, foi à época onde, tanto na
tela como na vida, era fácil distinguir o bem do mal, onde era fácil saber quem
era o bandido e quem era o “artista”.
O "Tropa de Elite 2" de José Padilha é genial não apenas pelos aplausos que suas cenas levantam da platéia ou pelas emoções que nela produz, mas sim por nos levar a refletir, não sobre o mundo da fantasia, mas sobre o mundo real, com uma pergunta "osso duro de roer": Onde está e quem representa o mal? Se ligue, essa pergunta "também vai pegar você".
A todos os meus amigos, desejo uma boa semana e bons dentes para roer os ossos do dia-a-dia, por mais duros que eles sejam.
Saúde, luz e paz
Virgílio Agra.
(escrito
em 08/11/2010)
OBS: Para aqueles que quiserem
relembrar, ou para aqueles que não conheceram, segue abaixo o trecho final do filme
“Dio, come ti amo”, com a interpretação emocionante de Gigliola Cinquetti.
Um comentário:
Lindo texto.
Cheguei a sentir nostalgia por tempos que sequer vivi.
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