quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Otília e o Xagado


Otília - 1973
Foto gentilmente cedida por Olivan Medeiros

(escrito em 22/11/2009)

Colegas de todas as cores.

Quando garoto costumava ir com meus pais a Poço das Trincheiras, a terra natal da minha mãe. Distante apenas 12 quilômetros de Santana do Ipanema, a pequena cidade está situada à margem do Rio Ipanema um pouco acima no curso do rio.

Íamos, regularmente nas datas comemorativas como Festa de Reis, Dia de São Sebastião, o padroeiro do lugar, e Dia de Finados, quando reverenciávamos as várias gerações dos nossos antepassados que viveram e lá morreram. Mas, na maioria das vezes, íamos simplesmente para visitar os parentes já idosos como minhas tias-bisavós, pelas quais dedicávamos uma atenção especial porque foram elas que criaram o meu avô Gaspar. Seus nomes eram Maria Francisca e Francisca, mas eram conhecidas como Mamãezinha e Madrinha Yayá, respectivamente. Além destas, visitávamos sempre outra tia, irmã da minha avó, chamada Donatila, a qual chamávamos de Titila.

Quando eu era menino, Titila já era viúva e tinha duas filhas: Tarcísia e Nanci. Da primeira lembro-me bem, mas de Nanci, infelizmente, guardo poucas lembranças. Lembro também que na casa da minha tia havia uma empregada chamada Otília, uma mulher mestiça, de corpo esguio, cabelo pixaim e a pele escurecida, não necessariamente negra, mas sim com as características que compõem o biótipo, próprio do povo sertanejo, tão bem descrito pelo grande Euclides da Cunha.

Não sei exatamente onde Otília nascera, mas é sabido que ela chegou ao Poço das Trincheiras ainda menina, proveniente de uma comunidade próxima e que era filha de Dona Generosa. Sendo mulher, pobre e analfabeta, vivendo numa comunidade que se orgulhava de uma ascendência holandesa, no início do século passado, não coube a Otília outro ofício senão o de empregada doméstica. Trabalhou em casas de várias pessoas como Mamãezinha, Tia Adelaide e finalmente Titila.

Otília era meio alvoroçada do juízo, mas o coração era tão grande que não sei como cabia no peito e foi uma presença marcante na história da nossa família. Conta minha mãe que nos seus tempos de menina havia uma porca grande que, não se sabe por que, era chamada de “Generosa”, o mesmo nome da mãe de Otília. Um belo dia chegou a hora de “Generosa” virar toucinho e, quando Otília viu a porca morta, abraçou-se com ela e chorava dizendo:

 - Minha mãezinha! Mataram minha mãezinha.

Ela era bastante religiosa, mas com sua espontaneidade não escapava de cometer alguns deslizes. Certa ocasião ela estava assando castanhas de caju usando a técnica milenar de jogá-las no fogo para que o óleo causticante que envolve a amêndoa pudesse ser eliminado. As castanhas estavam estourando, lançando umas labaredas de fogo alimentadas pelo óleo, até que uma pequena gota foi arremessada bem no olho de Otília. Felizmente não provocou maiores danos, mas a dor foi tão grande que ela no desespero apelando para os céus gritou:

 - Valei-me Nossa Senhora do C... da Peste!

Mamãe conta que nos seus tempos de menina, quando não havia certas comodidades como televisão e muito menos energia elétrica, Otília reunia a criançada para contar "histórias de Trancoso". Mas ela não contava uma história simplesmente, dava sim um verdadeiro espetáculo, porque ela teatralizava toda a narrativa. Fazia as vozes dos personagens, gesticulava, alterava sua fisionomia, levantava-se e gritava de modo tal que prendia a atenção de todas aquelas crianças. Um belo dia, quando o repertório esgotava-se, ela contava novamente as mesmas histórias que já havia contado anteriormente.

Na sua teatralidade espontânea alterava o enredo das histórias, criava novos personagens, novas situações e a meninada... adorava. Mamãe diz que eram muitas histórias, mas uma delas parece ter sido a favorita das crianças, pois elas sempre pediam para Otília contar, era a história do Xagado. Não me perguntem como era essa história, pois nem minha mãe, que a ouviu inúmeras vezes, consegue lembrar. Motivo: Cada vez que Otília contava a história, contava de um jeito diferente.
Às vezes, uma criança maior lembrava-se da versão anterior e tentava corrigir a contadora, mas ela argumentava logo:

 - Você num sabe como era não! É do jeito que eu tô contando.

Mas aquela figura que tanto se empolgava para contar histórias, sabia também expressar carinho e afeto com o seu jeito simples e sincero de falar. Ainda me lembro, que quando era menino, Otília olhava para mim e com sua voz grave dizia para minha mãe:

 - Vige minha "rimã" (irmã), como é bonitinho "Vrigilinho". Hein, hein! Que benza Deus.

Onde quer que estivéssemos, a presença de Otília era motivo de alegria, pois ela logo tornava-se o centro das atenções. Quando já rapaz, lembro-me de um dia em que estávamos eu, minha mãe e minhas tias tirando a palha de umas espigas de milho verde, na casa da minha avó e Otília resolveu contar uma história de um "trovão de estralo". Não houve quem não prestasse atenção e nem quem conseguisse ficar sério com o jeito dela contar. Otília era em essência uma verdadeira artista popular e trabalhava como empregada doméstica na casa da minha tia Donatila.

Otília nunca se casou, nunca teve filhos e muitos foram os anos em que serviu à casa de Titila. Minhas primas tornaram-se professoras e foram morar na capital. Com as filhas morando longe e os sobrinhos e sobrinhas também, minha tia percebeu que ela e Otília tinham apenas a companhia uma da outra e a relação entre ambas foi cada vez mais se estreitando. Com o passar dos anos Otília passou a ocupar um dos quartos da área social da casa e este era o quarto vizinho ao de minha tia. Lembro-me que as vezes as duas brigavam uma com a outra, mas nunca nada sério, apenas teimosia. Curiosamente, uma tratava a outra pelo mesmo apelido carinhoso: Tilinha.

Um dia Otília estava sentada numa cadeira e aquele seu coração enorme simplesmente parou. E foi assim, sem gestos, falas ou qualquer teatralidade que ela se foi. Minhas primas acolheram Titila e cuidaram dela até que um dia esta também partiu. Partiu para encontrar-se com Tilinha, e lá no céu, quando a encontrou, muito provavelmente estava contando a história do Xagado para os anjos e querubins.

Lembrando que a semana que passou foi comemorado o Dia da Consciência Negra, gostaria aqui de prestar minha sincera homenagem a esta mulher mestiça, meio branca, meio negra que fez a alegria de tantas crianças e que, com sua simplicidade e inocência infantil, conquistou o carinho e o respeito de toda a família a qual tanto serviu. Hoje, eu não consigo pensar em Otília como uma criada. Ela é uma figura que faz parte não apenas da história da minha família, mas é parte dela própria, não podendo jamais ser separada ou mesmo esquecida.

Na semana passada contei a história do Festival Universitário de Música do DCE-UFAL, e que eu havia comprado o LP com as músicas do III FUM. Gostaria de me desculpar por um detalhe: tenho o disco até o dia de hoje e este foi um presente da minha namorada à época e hoje minha esposa Eliane. Com dedicatória e tudo. Ou eu corrigia este detalhe, ou então...

Antecipando aos meus colegas que na próxima semana provavelmente não enviarei minhas saudações, gostaria de desejar a todos uma ótima quinzena.

Saúde, luz e paz.

Virgílio Agra.

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